Por sorte o seu “sumiço” não se espalhou pela escola. Com a exceção dos seus amigos, de Robert e de Joanna, ninguém sabia que Cherry passou algumas horas sumida. Joanna e Robert, cada um à sua forma, inclusive sabiam onde ela tinha estado. Mas a última coisa que precisava, no momento, era ter que lidar em estar no centro das fofocas do colégio. Ainda mais quando tinha um problema tão maior para lidar no momento. E, incrivelmente, não estava falando de Robert e seu ataque de pelanca.
Joanna Lambert.
Não se falaram mais desde o dia em que ela lhe encontrou no meio da estrada. Ocasionalmente se viam em aulas, mas não chegavam a trocar uma palavra se quer. Por um lado, havia uma parte de Cherry que tinha medo de que Joanna estivesse lhe evitando por sabe-se lá qual motivo. Outro agradecia, já que podia continuar fingindo que nada estava acontecendo de estranho dentro de sua cabeça sempre que estava na presença da Lambert. Mas sabia que não podia evita-la para sempre. Afinal, eram dupla no festival de primavera e, além disso, ainda estava com o casaco dela e precisava devolver.
— O Gildo teve uma ideia maravilhosa para os efeitos de luz da peça! A gente vai no centro mais tarde comprar o que precisa para começarmos a montar! — dizia Mitsuha parecendo bem feliz com sua dupla enquanto comentavam sobre o trabalho durante o almoço da quinta-feira — E você, Tris? Como estão os ensaios?
— Normais, eu acho. A Iseult é legal. Ela é do clube de teatro e parece ter muito talento para as artes cênicas. — respondia Tristan, com um ar animado. E para quem conhecia ele mais de perto, dava para notar que desde o início dos ensaios para a peça, ele parecia bem mais leve do que em geral era — Ela tem me ajudado bastante com as falas e com algumas dicas. Tem sido bem proveitoso na verdade.
A felicidade dos amigos foi bom para distrair um pouco a cabeça de todos os últimos acontecimentos. Mitsuha em geral era sempre animada, mesmo com o pequeno drama dela em relação à Ashley, mas Cherry sabia que Tristan era sempre um assunto um pouco mais pesado, principalmente por conta das cobranças dos pais. Ver ele tão animado com algo era revigorante de alguma forma.
— E você, Cora? Como tem sido com o Marcus?
A pergunta de Mit aparentemente não tirou apenas Cherry dos seus pensamentos. Cora também parecia bem distraída no momento e se assustou em ser puxada para o assunto quando na verdade parecia bem ocupada em brincar com sua comida no prato. Piscou os olhos demoradamente, olhando para a amiga como não tivesse processado a pergunta, demorando até mesmo para soltar um “ah” de entendimento, encolhendo um pouco os ombros.
— Tem sido ok. Ele é meio burro e as vezes parece perder mais tempo dando em cima de mim do que querendo fazer o trabalho. É meio incômodo as vezes, mas acho que vamos conseguir terminar a decoração do cenário a tempo.
Torcendo um pouco a boca, Cherry ficou observando Coraline, com um pouco de pena. Algo em sua mente lhe alertou para o quanto era estranho ela parecer tão insatisfeita com sua dupla, sendo que em geral ela sempre parecia feliz depois que voltava de uma suposta reunião do trabalho. Estava abrindo a boca para perguntar algo quando a voz de Travis chegou ali.
— Oh, vocês estão falando do trabalho? Porque minha dupla mal aparece para as nossas reuniões. Tem sido um saco, sabe? Será que se eu perguntar para a prof. Mounthbatten ela me muda de dupla?
— Não. — respondeu Cherry meio de supetão. Encolheu os ombros ao notar os olhos dos amigos sobre si antes de responder — Eu tentei.
— Verdade, a Cher está sofrendo nas mãos de Joanna Lambert, não é? — perguntou Tristan com um ar divertido. Lançando um olhar breve na direção da mesa das rascals onde Joanna ria de Mildred e Videl fazendo uma luta de garfos na tentativa de ver quem ficava o último bolinho de carne, a deu de ombros antes de responder.
— Não tem sido tão ruim assim na verdade.
Um “oh” coletivo de surpresa fez Cherry rir. Depois de um bom drama sobre Cherry ter sofrido uma lavagem cerebral, começaram a brincar sobre finalmente a paz reinar no microcosmo do ensino médio. Cherry só conseguia rir de todo o drama que os amigos faziam. Em algum momento seus olhos encontraram os de Joanna, mas dessa vez ela não desviou. Sorriu na direção da garota antes de voltar sua atenção para os amigos, agradecendo por terem mudado o assunto.
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O horário depois do almoço da quinta-feira era sempre o mais dolorido para Joanna. Odiava as aulas de álgebra e odiava o quanto o professor falava cuspindo. Não que tivesse tanto problema com isso, já que em geral sentava no fundo, mas ainda assim era desagradável de assistir. Arrastando os pés na direção da sala de aula com suas amigas quando seu olhar encontrou o de Cherry parada no corredor. Nos últimos delas ela tinha estado menos arisca, até mesmo lhe cumprimentando quando se encontravam pelos corredores, mas dessa vez a garota fez um sinal com a cabeça, pedindo para Joanna encontra-la num corredor próximo. A Lambert demorou um pouquinho para entender o sinal, mas tratou de fazer as amigas seguirem em frente.
— Esqueci um negócio no meu armário, vão indo na frente, já encontro vocês na sala.
E deixando que elas fossem na frente, acabou seguindo para o corredor onde Cherry tinha indicado. Era o corredor que levava para o auditório e como não haviam salas sendo usadas ali naquela tarde, estava consideravelmente mais vazio que os outros. Encostou-se perto de uma das portas, aguardando Cherry que não demorou muito à chegar por ali.
— Ei. Aconteceu alguma coisa com o trabalho? — perguntou Joanna a medida que a ruiva ia se aproximando. Cherry balançou a cabeça negativamente e foi abrindo a mochila, tirando de dentro o casaco que Joanna tinha lhe emprestado no dia em que lhe encontrou na parada de ônibus.
— Aqui. Seu casaco. Para provar que eu não roubei ele. — falou Cherry num ar divertido enquanto entregava para Joanna. Com uma risada curta, Joanna pegou o casaco com uma mão, levando até o rosto e cheirando.
— Oh, você lavou! Ficou cheiroso. — falou enquanto ia mudando a posição do casaco no rosto, como se quisesse cheirar cada pedaço dele. — Valeu, tá começando a ficar frio, eu vou mesmo precisar dele.
— Eu quem agradeço. Você do nada começou a se tornar minha heroína particular — falou Cherry em um tom de riso. Acabou rindo ainda mais quando Joanna fez uma pose heroica, acabando por acompanhar a risada de Cherry logo depois.
Não ia negar, era um sentimento gostoso. Nem lembrava a última vez em que ela e Cherry estiveram conversando tão descontraidamente assim. Os últimos anos tinham sido tão tensos, com as duas se mantendo longe com aquela rivalidade meio idiota. Com os olhos em Cherry mas a mente distante, Joanna colocou o casaco por cima do ombro e ficou olhando para a Depardieu com as sobrancelhas erguidas antes de falar.
— Tem alguma coisa importante para fazer agora?
— Ver aula? — disse Cherry, como se fosse óbvio. Joanna deu um sorriso maroto antes de segurar a mão de Cherry, puxando-a de levinho.
— Vem comigo.
Não deu muito tempo de Cherry contestar, mas sentia que a garota queria fazer isso. A medida que seguiam no contra fluxo dos alunos que iam na direção das salas de aula, sentia que a garota abria e fechava a boca na tentativa de argumentar alguma coisa, mas estavam quase na porta de saída da escola quando a ruiva finalmente conseguiu falar alguma coisa.
— Eu não posso faltar aula! Isso seria errado.
— Mas você não está faltando aula! Você tem uma autorização especial para se ausentar da aula por tempo indeterminado para resolver assuntos referentes ao festival da primavera. — disse Joanna, como se já tivesse tudo roteirizado na sua cabeça. Quantas vezes ela já teria usado versões diferentes da mesma desculpa no passado? Nem ela mesma saberia dizer.
— Com autorização de quem? — perguntou Cherry, com um ar curioso.
— Minha! — falou Joanna num ar divertido, enquanto puxava ela para o lado de fora, mas Cherry ainda parecia reticente — Qual é, Paris, eu juro que você não vai tomar falta e nem ficar com uma mancha no seu currículo.
— Não é só isso. — disse Cherry, mordendo a parte de dentro da bochecha nervosamente, olhando ao redor com medo de ser flagrada — Eu estou de castigo. Minha mãe me proibiu de sair de casa se não for para ir na escola.
— Hm. Isso pode ser um problema. MAS, por outro lado, ela precisaria descobrir que você não está na escola e da minha boquinha ela não vai ouvir nada. — disse Joanna passando os dedos sobre os lábios como se fechasse um zíper sobre a boca, antes de sorrir de forma tranquilizadora na direção de Cherry — Qual é, Paris. Confia em mim?
Deu para ver que as engrenagens se moviam lentamente dentro da cabeça de Cherry no momento em que Joanna fez aquela pergunta. Por mais que ficar ali paradas por tanto tempo pudesse fazer com que fossem pegas, Joanna não apressou ela. Ficou olhando para Cherry, mantendo os olhos nos dela até que a ruiva desse uma resposta, revirando os olhos e rindo meio nervosa.
— Ok, Aladdin, eu confio.
Com um riso curto, Joanna voltou a segurar a mão dela, puxando-a na direção da caminhonete. Tendo certeza de que ninguém estava observando elas, jogou o material para dentro e tratou de subir logo em seguida, ajudando Cherry a subir antes de sair o mais silenciosamente que o motor barulhento do carro podia.
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Tinham andado por um bom tempo pela cidade, aparentemente sem rumo. Cherry sentia um pequeno formigamento na boca do estômago, com uma mistura de medo e adrenalina. Em todo seu perfeito histórico escolar, jamais tinha matado aula. Podia até ter perdido algumas aulas por estar doente ou ocupada com algum clube ou treinos da equipe de lacrose, mas tudo com justificativa acadêmica. Nunca tinha perdido aula apenas por querer perder aula.
Pararam numa loja de conveniência para comprar a maior quantidade de bobagem que Cherry já viu, antes de seguirem até um parque perto do centro da cidade. Era movimentado o suficiente para ninguém notar elas ali matando aula. Estacionaram a caminhonete nos arredores e seguiram até o meio do parque, onde ficava um pequeno lago artificial onde alguns patos boiavam lentamente sem pressa alguma.
— Então é assim que vocês se sentem? — perguntou Cherry enquanto abria uma barrinha de cereal. Joanna olhou para ela enquanto enchia uma mão com salgadinhos e enfiava na boca, terminando de mastiga para poder responder.
— Assim como?
— Assim, sendo delinquentes juvenis, matando aulas, burlando as regras. Assim, sendo...rascals.
— Ah. — Joanna riu enquanto ajeitava a postura meio deitada de bruços, comendo mais um pouco de salgadinho antes de responder — E como seria esse sentimento? De liberdade?
Cherry abriu a boca para responder, mas não sabia como responder aquela pergunta. Olhou novamente para Joanna e o sorriso dela demonstrava que ela estava satisfeita em ter colocado Cherry naquela sinuca. Acabou rindo ao perceber que iria responder exatamente o que a Lambert queria, meneando a cabeça positivamente.
— É. De liberdade. Não estou dizendo que aprovo ficar faltando aula e ser irresponsável, mas de alguma forma... — e parou para respirar fundo enquanto observava a paisagem. Tinha que admitir que era bonito ver a luz do sol tocando algo que não fossem as paredes da escola — é uma sensação de liberdade mesmo.
— Viu? E você achando que não podia aprender uma coisa ou outra comigo. — falou Joanna com um ar de riso, enquanto recebia um empurrãozinho de leve de Cherry.
— Eu sempre achei que não podia aprender nada que PRESTE com você, Lambert. E eu continuo certa quanto a isso. — falou num tom divertido enquanto ajeitava a postura, sentada com perna de índio enquanto olhava o lago à sua frente. — De toda forma, obrigada.
— De nada. — respondeu Joanna, com uma pontinha de dúvida na voz — Pelo que você está me agradecendo mesmo?
Até podia palestrar ali e explicar porque estava agradecendo. Mas talvez estivesse passando tempo demais com Joanna. Olhou a garota um pouco de canto, com um sorriso maroto e murmurando um “descubra”, quase que apenas movendo os lábios para isso. A Lambert abriu a boca de forma indignada antes de falar ainda rindo.
— Isso não é justo! Quando foi que você decidiu se tornar tão misteriosa?
— Por que? Não gostou desse meu lado misterioso? — perguntou Cherry ainda num tom divertido. Mordeu o resto da barrinha de cereal e deu um demorado gole na água antes de voltar a falar — Talvez eu deva pedir para a prof. Mounthbatten para ela me dar um papel na peça, o que acha?
— Parece que alguém quer roubar o papel da Iseult da...Iseult! Isso ainda é tão confuso para mim. — falou Joanna em tom de riso, antes de pigarrear — Falando em trabalho, a gente precisa adiantar o nosso.
— Você realmente me convenceu a matar aula para falar sobre trabalho? — perguntou Cherry, com um sorriso de canto.
— Essa foi a desculpa oficial, não é? — devolveu Joanna, arrancando uma risada de Cherry antes de encolher um pouco os ombros — Tá, já que você prefere não falar do trabalho enquanto mata aula, que tal falarmos do trabalho domingo? Lá em casa. Eu JURO que estou 100% comprometida com o trabalho.
— Joanna... — disse Cherry, meio incerta. Sentiu, de alguma forma, o coração bater com força contra o peito. A ideia de passar o dia na casa de Joanna só com ela trazia alguns sentimentos contraditórios que Cherry não sabia se estava pronta para lidar no momento — eu estou de castigo, lembra?
— Mas é para tratar de um assunto da escola! Sua mãe não ia querer que suas notas acabassem diminuindo por conta de um castigo bobo, não é? — perguntou Joanna e Cherry começou a achar que ela seria uma ótima advogada, porque os argumentos dela em geral costumavam ser muito bons — Não vai ser nada de mais, só falaremos sobre o trabalho, juro. Então, marcado? Eu até preparo o almoço para nós!
Meio incerta, Cherry ainda abriu um pouco a boca, como se fosse tentar contra argumentar, mas em algum momento desistiu. Respirou fundo e aos poucos foi se dando por vencida, antes de olhar para Joanna com uma expressão divertidamente contrariada.
— Ok, Lambert, mas acho bom eu não ter uma dor de barriga!
— Yey! Você vai ver, eu sou a melhor cozinheira desse mundo todo, Cherry Depardieu, você mal perde por esperar! — riu Joanna, enquanto Cherry fingia que duvidava, mas apenas para encher o saco dela.
Acabaram desviando o assunto para coisas banais, conversando sobre séries que estavam assistindo, filmes que tinham visto e até mesmo músicas que recentemente começaram a ouvir. Assuntos que acabam se acumulando bastante quando você passa os últimos seis ou sete anos sem falar com alguém.
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O sol estava se pondo quando a caminhonete parou na frente da casa de Cherry. Até pensaram em voltar para a escola e fingir que estiveram lá o tempo todo, mas parecia trabalhoso de mais para as duas, então preferiam cortar a fadiga e seguirem direto para casa. Agradecendo pela tarde, Cherry foi descendo da caminhonete, dando a volta para poder seguir para casa. Algo em sua cabeça pareceu estalar no momento e ela voltou quase correndo, mesmo que Joanna não tivesse feito menção de partir antes que ela estivesse dentro de casa.
— Vai ter uma festa na casa de um amigo, no lago Emerald. É na semana que vem, se você quiser ir.
— Isso é um convite, Paris? — perguntou Joanna, com um sorrisinho meio de canto, ligeiramente malicioso. Cherry revirou os olhos de leve mas não deixou de rir.
— Até onde eu saiba, sim.
— Posso levar as meninas? — perguntou Joanna, meio debruçada na janela da caminhonete, olhando direto para Cherry.
— Você iria sem elas? — a pergunta de Cherry parecia mais retórica do que um questionamento. E quando Joanna respondeu um “não”, ficou bem claro — Então claro que pode.
— Ok então. A gente se vê no domingo, Paris. Não vai esquecer, hein!
Com um “pode deixar” baixinho, Cherry foi se afastando, para seguir na direção da sua casa. Como previsto, só ouviu o som do motor da caminhonete acelerando quando já estava dentro de casa. Aquilo ainda arrancava um sorriso de Cherry, ela só não sabia porque. Sentindo-se leve e mais feliz do que tinha estado nos últimos meses, a garota seguiu para o seu quarto, sentindo-se quase uma criança que aprontou alguma coisa e ao contrário de se sentir culpada, estava se sentindo muito animada.
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