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Capítulo 11

Domingo em geral era o dia em que as irmãs Lambert dormiam até mais tarde. Jules ainda acordava antes de Joanna que costumava dormir até as 2h da tarde. A grande surpresa daquele dia para a Lambert mais jovem foi acordar as dez da manhã e notar que já havia movimentação na parte de baixo da casa.

— Joanna? — perguntou Jules, receosamente se esticando para poder tentar enxergar a irmã por ali. Na cabeça de Jules, era muito mais fácil ser um ladrão do que a irmã acordada.

— Bom dia! Já acordou? Achei que ia dormir até mais tarde. — dizia Joanna, também se esticando para poder ver a irmã, mas sem ir até ela.

— Essa frase devia ser minha? — disse Jules, com um riso curto e aliviado. Terminou de descer as escadas e foi até onde a irmã estava, observando a bagunça que a cozinha tinha se transformado — Acordou decidida em redecorar nossa cozinha?

— Não, não. Eu vou preparar o almoço hoje. — dizia Joanna enquanto olhava algo no celular e depois corria na direção da geladeira para pegar algumas coisas, trazendo-as para a mesa. Jules piscou os olhos de forma lenta e confusa, abrindo um pouco a boca sem emitir som algum, deixando claro que estava em choque. Caminhou até a irmã e ficou na ponta dos pés para poder tocar sua testa.

— Você tá doente? Não, você não está com febre. É uma pegadinha? ISSO! Só pode ser uma pegadinha! Onde você escondeu as câmeras? Pode falar, eu descobri, né?

— Há Há Há. Você é uma comediante, Jules Lambert. — disse Joanna enquanto afastava a mão da irmã, seguindo seu caminho — Uma garota não pode demonstrar interesses em cozinhar?

— No seu caso? — perguntou Jules com um ar debochado — Joanna, você tem preguiça de colocar comida pra esquentar no micro-ondas! Já sei. Você vai trazer alguém aqui pra casa né? É um namorado? Uma namorada? Tá querendo impressionar alguém, né?

— Não! — defendeu-se Joanna, tentando soar ofendida — Se você prepara aquelas gororobas veganas pra impressionar o seu namoradinho sem cérebro, não significa que eu faça o mesmo. 

Jules inflou as bochechas, olhando feio para a irmã.

— O Sonny não é meu namorado!

— Eu não falei que era ele, mas se a carapuça serviu... — disse Joanna com um sorriso maroto, enquanto voltava a olhar o celular.

— Idiota. — resmungou Jules, antes de sentar-se na mesa, ainda observando a irmã separar os ingredientes no balcão — Vaaai, me fala, por que isso de repente?

— Não é nada demais. — disse Joanna, terminando de separar alguns ingredientes para poder voltar-se para Jules — Eu só vou ter que adiantar um trabalho de literatura por conta do festival da primavera. Você deve ter ouvido falar, ninguém fala de outra coisa no colégio.

— Ooooh, sim, a apresentação teatral. Ouvi falar sim. — disse Jules meio debruçada sobre a mesa, brincando com alguns tomates que Joanna tinha deixado ali — É em dupla né? Com quem você ficou?

— Com a Cherry. — disse Joanna, casualmente, como se comentasse algo banal como o tempo. Pela expressão de Jules, dava para ver que não era.

— A Cherry? Tipo Cherry Depardieu? Capitã de Lacrose? Parte da realeza? A mesma Cherry que te despreza desde a sétima série? — perguntou Jules, claramente chocada com a informação. Mais chocada ainda com a tranquilidade com que Joanna concordava com tudo o que ela falava — Ela vai estar aqui? Na nossa casa?

— Yep. Ela vem almoçar enquanto a gente adianta o trabalho. Você tem compromisso, não é? — perguntou Joanna, com um sorriso que em seu íntimo dizia “é melhor você não estar mesmo”.

— Ah, eu ia encontrar uns amigos, mas um evento desse porte, acho que eu posso cancelar.

— Eu deixo você dirigir a caminhonete. — cortou Joanna. Mal teve tempo de terminar de falar aquilo e Jules soltou um “SÉRIO?” bem alto, quase gritando — Mas nada de ficar se agarrando com seu namoradinho nela!

— Eu já disse que o Son... — mas parou ao notar o olhar da irmã em sua direção. Estreitou os olhos enquanto observava Joanna, apontando o dedo em sua direção — Você quase me pegou. Mas não se preocupa, eu não tenho namorado e vou cuidar muito bem do Troço.

— Ei, não chama ela assim! E acho melhor cuidar mesmo, se tiver um arranhãozinho nela quando você voltar, eu tiro o arranhão esfregando sua cara nela! — a medida que Jules foi saltitando para o andar de cima, provavelmente contar para as amigas que ia poder dirigir o carro hoje, Joanna foi aumentando a voz para ser ouvida. Acabou rindo ao ouvir a irmã gritar um “PODE DEIXAR” do andar de cima, enquanto voltava sua atenção para a receita.

 

─────────

 

Estava nervosa. Bem nervosa na verdade. Tinha passado os últimos dois dias tentando passar a impressão de que estava tudo bem. Mas a medida que o domingo chegava, sentia o nervosismo crescendo. Tanto que acordou um pouco mais cedo naquela manhã de domingo, até mais cedo do que de costume e decidiu ocupar sua cabeça de alguma forma para não acabar surtando de nervosismo.

Tentou seguir a rotina de sempre. Tomou café com sua mãe – ou, no caso, ficou sentada comendo enquanto sua mãe não tirava os olhos do celular – antes de sair para uma caminhada matinal pelo bairro. Tomou um banho ao chegar em casa e sentou-se na própria cama com o notebook no colo para tentar encontrar imagens que poderiam usar de base para o vestido da Iseult na peça. Afinal, era aquilo que iriam fazer, não é? Adiantar o trabalho. Era o que repetia para si quando começava a pensar de mais o que não devia.

Era perto da hora do almoço quando por fim fechou o notebook e colocou numa mochila, junto com alguns livros que tinha pego na biblioteca para usarem como base. Desceu as escadas e foi até o escritório para encontrar sua mãe sentada num sofá, ainda sem tirar os olhos do celular. Pigarreou de leve para chamar a atenção dela antes de falar.

— Mãe? Eu, hm, vou almoçar na casa de uma..de uma amiga. — disse Cherry meio incerta. A mulher finalmente tirou os olhos do celular, fitando a filha de forma analítica.

Melliope Depardieu era, de certa forma, intimidadora. Elegante, com um porte invejável, um olhar sempre altivo e ligeiramente duro. Era o tipo de pessoa rígida, que não aceitava nada menos do que a perfeição. E isso incluía a própria Cherry.

— Você está de castigo, lembra? — perguntou a mulher, num tom natural de repreensão que Cherry já tinha se acostumado.

— Eu sei, mas eu estou indo para adiantar um trabalho da escola. Lembra? Eu te falei sobre o Festival da Primavera. — disse Cherry, ouvindo um breve “ah” da sua mãe, antes que ela voltasse para o celular.

— Aquela bobagem de teatro. Francamente, é para isso que serve o dinheiro que seu pai doa para essa escola? — Cherry queria retrucar e argumentar que arte era sim importante em qualquer escola, mas sabia que seria inútil — Não demore para chegar em casa, você ainda está de castigo.

Murmurando um “certo”, a ruiva deu as costas e saiu rápido antes que sua mãe mudasse de ideia. Da mesma forma como era rígida, sua mãe também tinha a incrível capacidade de mudar de ideia sobre algo que lhe desagradava muito rapidamente. Pediu ao motorista da família para lhe levar até a casa de Joanna e só se sentiu de fato aliviada quando já estavam longe de casa.

Já tinha algum tempo desde a última vez em que estivera ali. Tirando, obviamente, o dia em que foram deixar Joanna e Mildred depois que Robert furou os pneus da caminhonete dela, havia uns bons anos desde que tinha estado na casa de Joanna pela última vez. Era num bairro mais distante do centro, com casas mais simples que as do bairro onde Cherry morava. Eram pequenas, quase todas iguais, a maioria com uma aparência malcuidada, da mesma forma que os jardins em frente às casas. Era de fato bem diferente do que ela estava acostumada, mas ainda assim lhe trazia algumas lembranças.

— Quer que eu espere a senhorita? — perguntou o motorista, assim que pararam na frente da casa indicada.

— Não precisa. Eu ligo quando precisar voltar.

E despedindo-se brevemente, saiu do carro, fechando a porta com cuidado. Viu o carro se afastar rua à baixo antes de voltar-se na direção da casa. Estava um pouco diferente do que Cherry lembrava, um pouco mais mal cuidada, mas com certeza ainda era a mesma casa que ela tinha frequentado algumas vezes quando mais nova. Venceu o pequeno espaço entre a calçada e a porta e apertou a campainha, ouvindo um “JÁ VAI” vindo do lado de dentro.

Não demorou muito para a porta ser aberta, mas quem abriu não foi Joanna. A garota era consideravelmente mais baixa do que a Lambert e tinha cabelos pretos, mas os olhos com certeza eram iguais aos de Joanna.

— Oh, você é a Cherry? Você é mais bonita do que a Joanna faz parecer. — disse a garota, com um ar divertido — Você não deve lembrar de mim, mas eu sou a Jules, a irmã da Joanna. Obviamente eu fiquei com toda a beleza e sendo de...

— Ai Jules, sai... — resmungou Joanna, empurrando a irmã para o lado enquanto finalmente aparecia no campo de visão de Cherry — Me desculpa, minha mãe tomou muito leite estragado quando tava grávida da Jules, por isso ela é assim.

Cherry acabou rindo com o “EI” indignado de Jules do outro lado. Não tinha irmãos, era filha única e de todos os seus amigos, apenas Tristan e Cora tinham irmãos, mas conviviam pouco com eles. Então obviamente era divertido para a Depardieu ver uma relação de irmãs clássica, como entre Joanna e Jules.

— Tudo bem, ela parece divertida. Tem certeza de que é mesmo sua irmã? — perguntou Cherry em tom de brincadeira, com um ar provocativo.

— O que você quer dizer com isso, Depardieu? — perguntou Joanna, falsamente indignada, enquanto Jules voltava a se intrometer.

— O que todos já sabem, Jo, que eu sou a irmã Lambert mais bonita, simpática, engraçada e carismática!

— Você não tinha que sair? Vai logo antes que eu mude de ideia! — ameaçou Joanna, com um ar brincalhão. Jules resmungou um “calma, já tô indo” antes de pegar uma bolsinha sobre a mesa, correndo na direção de Joanna que sacudia a chave da caminhonete no ar. Quando a mais nova fez menção de pegar, ela recolheu a chave, olhando com um ar de advertência para a irmã — Nada de sair da cidade e pegar a estrada, estamos entendidas? Nem beber nada se for dirigir. Se você for pega, é bom ligar pro papai ou pra mamãe irem te tirar porque euzinha não vou sair daqui. Estamos entendidas?

— Meu deus, você é muito chata! — resmungou Jules, revirando os olhos — Tá, tá, entendi, agora me dá isso.

Joanna ficou olhando a irmã um instante antes de entregar a chave para ela. Ficou parada na porta enquanto observava Jules manobrar o carro com alguma dificuldade para fora da garagem, antes que a caminhonete, lentamente, fosse sumindo da vista delas.

— Você deixa sua irmã de 15 anos dirigir? — perguntou Cherry, olhando meio escandalizada para Joanna.

— Ela tem que aprender de alguma forma, não é? Na idade dela meu pai já tinha me ensinado a dirigir. — disse Joanna, enquanto voltavam para dentro da casa, fechando a porta com cuidado — Ela vai ficar bem, relaxa. A Jules tem um pouco mais de juízo do que eu. O que não é lá grande coisa, ok, mas é alguma coisa pelo menos. Você trouxe um monte de coisa na mochila, né?

— Ah, sim. Alguns que eu peguei na biblioteca da escola e meu notebook. Achei que poderíamos usar algumas imagens como base. — dizia Cherry enquanto ia andando pela sala pequena, que dividia espaço com a cozinha, sem que houvesse uma separação de fato. Tirou a mochila e colocou com cuidado sobre o sofá, antes de voltar o olhar para Joanna, que tinha ido até um armário, tirando dois pratos de dentro.

— Massa! A gente pode começar logo depois de terminarmos de almoçar, hm? Você não vai querer deixar esfriar o super famoso espaguete à carbonara da mundialmente conhecida chef Joanna Lambert. — disse Joanna um tom extremamente pomposo, que fez Cherry rir. Em passos lentos, foi indo na direção da cozinha, apoiando as mãos na mesa.

— Não sabia que você conseguia fazer algo tão sofisticado, Lambert. — provocou Cherry, olhando Joanna que calçava um par de luvas nas mãos, para pegar uma panela de cima do fogão.

— Ah, minha cara Cherry Depardieu, você ficaria incrivelmente surpresa com as coisas que eu posso fazer. — disse Joanna, num tom enigmático que acabou arrancando outra risada de Cherry.

O almoço, surpreendentemente, já estava de fato servido. Cherry jurava que demoraria mais tempo e que isso acabaria atrasando um pouco o começo do trabalho, mas Joanna tinha sido surpreendentemente pontual. Não era um prato verdadeiramente sofisticado, era apenas o espaguete com molho carbonara e algumas iscas de frango empanadas, mas a Depardieu tinha que admitir que estava com um cheiro muito bom. Joanna fez questão de servir o prato de Cherry e mesmo depois de falar um bon appetit num francês cheio de sotaque britânico, a garota de cabelo colorido não tocou no garfo, olhando atentamente para Cherry.

— Que? — perguntou Cherry, um pouco constrangida. Tinha alguma coisa no seu cabelo? No seu dente? Mas tinha escovado eles tão direitinho!

— Nada, só quero registrar o momento em que você vai ser forçada a elogiar algo que eu fiz. — falou Joanna em tom de brincadeira, fazendo Cherry revirar os olhos de forma caricata.

— Você é muito convencida, sabia? — perguntou Cherry, com um riso meio de canto, antes de enrolar o macarrão no garfo. Soprou um pouquinho porque ainda estava quente antes de colocar na boca. Odiava admitir aquilo, mas estava realmente bom. Já tinha comido alguns melhores em restaurantes na Itália, mas isso não tirava o mérito de Joanna de ter feito um macarrão muito bom. Voltou a olhar para Lambert, que olhava em silêncio para Cherry, mas com olhos que gritavam um “E AÍ?”, esperando a opinião dela ansiosamente. Pigarreando de levinho, Cherry colocou os talheres novamente na mesa, se sentindo quase como uma juíza num reality show de culinária, antes de responder — Não está ruim.

— Você adorou, não foi? Pode dizer, eu não conto para ninguém. — falou Joanna com um ar de riso, ainda olhando fixamente para Cherry. A ruiva revirou um pouco os olhos, mas acabou rindo.

— Ok, ok! Está muito bom. Agora para de me olhar desse jeito, tá me assustando!

Coma uma risada alta, Joanna manteve o olhar sobre Cherry por um tempo, apenas para encher o saco da garota, que amassou um guardanapo para jogar na direção da Lambert. Depois de algumas risadas, acabaram seguindo o almoço, comentando coisas completamente banais, fazendo comentários sobre músicas do momento ou sobre séries que estavam assistindo ou mesmo filmes que tinham assistido recentemente. Fazia tempo que Cherry não tinha um almoço tão agradável sem ser com seus amigos. Em geral os almoços com sua mãe eram muito silenciosos. Perguntas rápidas sobre o dia uma da outra, questionamentos sobre a vida escolar de Cherry, lembretes nada sutis de todas as expectativas que a família colocava sobre ela. Depois disso, silêncio até que ambas saíssem da mesa. Ali não. Ela ficava rindo das coisas que Joanna falava e acabava por vezes entrando na brincadeira também. Ao final, quando a panela estava quase vazia já, estava cheia de mais para continuar comendo. Joanna recolheu os pratos e colocou na pia, antes de voltar-se para Cherry.

— Então, vamos começar os trabalhos ou tem espaço para a sobremesa?

— Não me diga que você também sabe fazer doces. — disse Cherry com um ar incrédulo, erguendo um pouco as sobrancelhas.

— Claro que sei! Tenho uma receita deliciosa e bem fácil de um brownie crocante que é uma delícia. Bem fácil mesmo, sabe? Em geral começa pegando o celular e depois ligando na Sweet’s, pedindo para eles virem entregar!

Cherry não evitou uma boa gargalhada, resmungando um “idiota” ao final, mas acabaram decidindo por deixar o brownie para mais tarde. Depois de terminar de dar uma geral na cozinha, trouxeram os livros e o notebook de Cherry para a mesa da cozinha para começarem a decidir o que fariam com o vestido de Iseult.

 

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O sol já estava quase se pondo quando por fim terminaram o desenho do que queriam para o vestido da Iseult. Separaram algumas fotos para usarem de base e já estavam planejando e encontrarem na oficina de confecção da escola para começarem a montar os vestidos. Cherry desligou o notebook e guardou na mochila junto com alguns livros quando um prato de sobremesa com um brownie até muito bonito foi colocado à sua frente.

— Juro pra você que é o brownie mais gostoso do mundo e se você discordar é porque me odeia.

— E quem disse que eu não odeio, Lambert? — perguntou Cherry com uma sobrancelha erguida e um ar enigmático, que só durou até ver a expressão falsamente indignada de Joanna.

— Você vem na minha casa, come minha comida e diz essas coisas. Sabe, Paris... — falou Joanna, pondo a mão sobre o peito enquanto fingia um choro — isso é cruel. Muito cruel.

Ainda rindo, Cherry ensaiou um pedido de desculpas falso, mas acabou apenas experimentando o brownie. Era de fato bem gostoso. Havia um recheio de nozes que tornava ele bem crocante. Soltou um pequeno “hmm” de aprovação que fez Joanna rir de forma satisfatória enquanto comia o próprio. Quando terminou de comer, levantou o olhar e viu que Joanna lhe olhava com aquele mesmo olhar cheio de expectativa, que acabou fazendo ela rir de novo.

— Para de me olhar assim, já disse que é estranho! — falou ainda rindo, pondo a mão sobre a boca para evitar que farelo de brownie voasse.

— Eu só vou parar de te olhar assim como você disse “ok Joanna, você estava certa como sempre, esse é o melhor brownie do mundo”. — disse Joanna num tom bastante resoluto, apesar do ar de riso.

— Não exagera. Não é bem assim. Você nunca está com a razão. — disse Cherry ainda em tom de brincadeira, rindo ainda mais com a cara de indignação de Joanna — Para de fazer essa cara, Lambert! Eu vou passar mal de rir!

Mesmo com o pedido, Joanna acabou fazendo mais algumas piadas que fizeram Cherry rir mais. A garota não chegou a passar mal de rir, mas ficou até um pouco sem ar. Não lembrava qual tinha sido a última vez tinha rido a ponto de sentir os músculos do rosto doerem. Quando finalmente conseguiu controlar o riso, Cherry encontrou Joanna olhando para si com um ar um pouco admirado em sua direção, com um sorriso calmo em seus lábios. Sentiu algo ferver em seu estômago e tinha certeza que o fervor passou para seu rosto com certeza.

— O que foi? Tem alguma coisa no meu rosto? — perguntou tentando passar um ar indiferente.

— Tem muita coisa na verdade. — falou Joanna sem desviar os olhos de Cherry — Eu já te falei né? Você fica bem mais bonita quando tá sorrindo.

Engolindo em seco, sentiu o coração errar uma nota e aquilo espalhar um calor pelo seu corpo todo. Um calor gostoso, como depois de tomar um chocolate quente num dia muito frio. Sentiu um formigamento na ponta dos dedos e apesar da vontade de sorrir, acabou controlando, desviando o olhar.

— Joanna, não...

Não houve resposta. Pelo contrário, o silêncio até incomodou um pouco Cherry. Mas antes que ela voltasse a olhar para Joanna, já pensando em mudar de assunto, foi pega de surpresa pela mão da garota em seu queixo, erguendo-o de leve. Sem que tivesse muito tempo, sentiu os lábios dela contra os seus, num beijo leve.

Não era nem de perto como o primeiro, que mais parecia uma provocação ou mesmo como o segundo que tinha sido motivado pela raiva. Era calmo, caloroso, acolhedor. Sentindo as pernas e as mãos tremendo, Cherry ficou sem reação por alguns instantes, mas algo dentro de si a impediu de fugir. Até porque, na verdade, ela não queria fugir. Decidindo não pensar muito naquele momento, colocou a mão sobre o rosto de Joanna e retribuiu o beijo que se desenvolveu calma, sem pressa, como se as duas quisessem aproveitar aquele tempo o máximo possível. Foi Joanna quem interrompeu o beijo de forma até abrupta, fazendo Cherry olhar para ela com uma expressão confusa.

— Vem. — murmurou a Lambert, puxando delicadamente as mãos de Cherry. Apesar de confusa, a ruiva deixou-se conduzir até o sofá, ainda com uma enorme interrogação em sua expressão, sentando ao lado de Joanna, que notou isso, respondendo com um ar divertido — Tava me dando dor nas costas ficar em pé já.

Apesar disso ter conseguido arrancar uma risada de Cherry, a garota pareceu repentinamente angustiada por algo.

— A gente não devia fazer isso.

— Hm? Por que não? — perguntou Joanna, subitamente confusa com aquilo.

— É errado. Nós somos duas garotas. Garotas deviam ficar com garotos. — disse Cherry ainda angustiada. Joanna, por seu lado, revirou os olhos.

— Qual é, Paris. A gente já está no século XXI. Você realmente acredita nisso? Eu acredito que as pessoas devem ficar com quem elas querem ficar.

— É complicado... — disse Cherry ainda angustiada. Respirando fundo, Joanna estendeu as mãos, segurando as de Cherry de leve.

— Você sente que é errado? Quando nós nos beijamos agora, você achou errado? Porque eu achei bom pra caralho, Paris. — falou Joanna, fazendo um carinho de leve nas mãos de Cherry, que respirou fundo, meneando a cabeça negativamente, indicando que não tinha sentido que era errado. Sorrindo meio de canto, Joanna chegou mais perto, tocando o rosto de Cherry com cuidado — Então que tal a gente esquecer um pouco isso e apenas aproveitar algo que nós duas estamos gostando?

Com um suspiro demorado, Cherry manteve os olhos em Joanna. Não era tão fácil esquecer essas coisas quando você passou a vida toda ouvindo que era errado, ouvindo piadas e insinuações maldosas de toda sua família. Tinha medo do que aconteceria se sua família soubesse, tinha até medo de como seus amigos iriam reagir, por mais mente aberta que eles parecessem. Mas ainda assim, quando os lábios de Joanna voltaram a tocar os seus, ela entendeu um pouco do que a garota falava. Era bom demais para ela pensar se era errado ou não. E de alguma forma, havia algo naquele beijo que despertava uma felicidade que ela não experimentava há algum tempo já.

 

─────────

 

Não soube quanto tempo tinham ficado naquilo, mas com certeza fazia algum tempo que ela não dava uns amassos tão demorados em alguém. Só pararam quando ouviram o som da caminhonete parando na entrada da casa e correram para não parecer que estavam se beijando há poucos segundos. Apesar de parecer desconfiar de algo, a garota apenas falou que iria subir para o quarto. Cherry tomou aquilo como uma deixa para ir embora, até porque não podia chegar tão tarde em casa. Já estava com o celular na mão para ligar para seu motorista quando Joanna interrompeu.

— Ei, eu te levo em casa.

Ficou um pouco incerta sobre se deveria ir com Joanna para casa depois do que aconteceu ali. Queria mesmo estar lidando com aquilo na mesma tranquilidade que Joanna estava lidando. Mas por dentro ela estava começando a surtar. Só não argumentou muito porque Joanna parecia decidida e, de alguma forma, enquanto estava com ela, aquele surto estava um pouco mais controlado.

Falaram muito pouco durante o trajeto, principalmente Cherry que passou a maior parte do tempo oscilando entre o silêncio e respostas monossilábicas. Quando finalmente chegaram na frente da casa de Cherry, Joanna foi a primeira a saltar. Quando Cherry desceu do seu lado, encontrou a garota já lhe esperando do lado de fora.

— Você não tá surtando né? — perguntou Joanna, com um ar preocupado. Cherry respirou fundo e, apesar da vontade enorme de falar que estava surtando sim com aquilo, alguma coisa lá dentro teve medo que isso fizesse Joanna se afastar. Então a garota apenas balançou a cabeça negativamente, o que fez Joanna abrir um sorriso tranquilo — Ok. Mas se estiver surtando... — se inclinando na direção da Depardieu, tirou o celular do bolso dela sem pedir autorização, apontando a tela para o rosto da ruiva, para destravar pelo reconhecimento facial. Cherry foi pega completamente de surpresa e acabou num misto entre divertimento e indignação.

— Ei! Isso não é justo! Devolve meu celular!

— Calma, garota! Parece que nasceu de 7 meses — disse Joanna com um ar de riso, digitando algo no celular de Cherry antes de devolve-lo — Pode me ligar se tiver surtando, ok?

Com um sorriso um pouco mais tranquilo, Cherry murmurou um “obrigada” antes de guardar o celular no bolso. Olhou nos olhos de Joanna e, apesar do medo de acabarem vendo as duas, inclinou-se na direção dela, dando um selinho rápido, prontamente correspondido. Murmurando um “a gente se vê”, a ruiva deu a volta no carro e segui na direção da casa. O fato de, novamente, o motor da caminhonete ter permanecido em silêncio até que ela estivesse do lado de dentro da casa fez Cherry sorrir mais um pouco.

Mas o sorriso se desfez assim que ela olhou para frente.

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