Pular para o conteúdo principal

Capítulo 2

Depois de passarem no mercado para garantirem não só a cerveja como também algo para comer, Joanna e Mildred seguiram finalmente para a casinha pequena no subúrbio de Riverside, onde Joanna morava. Estacionaram a caminhonete na calçada mesmo, já que não havia garagem e foram carregando as sacolas para o lado de dentro.

─ Sua irmã não tá? ─ perguntou Mildred enquanto ia ajeitando algumas latinhas no congelador da geladeira, tendo que cavar espaço entre comidas congeladas e gelo que se formava ali. Joanna ia preparando uma forma para já começar a esquentar uma das pizzas pré-prontas que tinham comprado.

Joanna morava na cidade com sua irmã mais nova, Juliane – ou Jules, como ela preferia ser chamada. Os pais das garotas Lambert eram fazendeiros que viviam num distrito afastado de Riverside, uma parte mais rural, mas que tinham feito um esforço para as filhas poderem estudar numa boa escola. Durante alguns anos, a mãe delas havia morado ali com elas, mas depois de Joanna aprender a dirigir, acabou voltando para a fazenda para ajudar seu marido. Periodicamente os Lambert iam até a Riverside ver como as meninas estavam e trazer comida produzida por eles mesmos.

─ Não. Ela deixou um recado falando que ia sair com o melhor amigo idiota dela.

— Uuuuuuh eles andam muito tempo juntos né? Daí vai sair namoro — disse Mildred, com um ar de riso meio provocativo. Joanna não evitou uma careta antes de falar.

— Credo! Vira essa boca pra lá!

Sonny era do time de futebol do ensino fundamental. Era um mini projeto daqueles mesmos atletas convencidos do ensino médio que Joanna tanto odiava. Não sabia o que a irmã via nele. Para Joanna, o garoto não passava de um pirralho metido. Odiaria ver sua irmã namorando um tipinho assim.

─ Se você diz. Ela ainda tá naquele lance de ser vegana né? ─ perguntava Mildred depois de ter colocado o máximo que conseguiu no congelador, alojando o resto das latas na parte de baixo, onde dava para ver alguns potes de comida vegana feita em casa.

─ Pois é. Acho legal, queria ter a mesma força de vontade dela, mas não sei se conseguiria viver sem um hamburgão... ─ e depois de colocar a temperatura certa do forno, pegou uma das duas cervejas que tinham comprado já geladas, abriu usando a barra da camisa antes de ir até a sala, jogando-se no sofá, empurrando pra longe algumas tralhas para dar espaço para Mildred sentar. ─ Então, filme ou aumentar o número de jogos invictos de MasterJoanna113?

Mildred revirou os olhos resmungando um “convencida” mas acabou preferindo filmes. Devolvendo com um “medrosa”, Joanna então passou a revirar o grande entulho de DVD’s espalhados pela sala em busca de algo bom. Enquanto a garota procurava, Mildred pegava a cerveja gelada que tinha sobrado e abriu sem pressa, dando um gole demorado antes de falar.

─ Então, qual seu lance com a Cherry?

─ Que? Eu não tenho um lance com a Cherry... ─ respondeu Joanna num tom pouco interessado enquanto começava a empilhar de um lado os filmes que não queria assistir e do outro os filmes que TALVEZ quisesse assistir. A pilha de “ com certeza quero assistir” até o momento estava vazia.

─ Oh sério? Porque eu achei, lá no fundo, que toda essa implicância era mais do que apenas ódio gratuito... ─ respondeu Mildred com um sorriso sacana.

─ Tipo tesão reprimido? ─ perguntou olhando para Mildred que apenas confirmou em meio à um gole curto da cerveja ─ Não, apenas o bom e velho ódio gratuito. Digo, da parte dela. Eu sou sempre um amorzinho. ─ e fez uma breve pose fofa, pondo as mãos abaixo da do queixo e piscando os olhos rapidamente. A risada e o olhar incrédulo de Mildred denunciavam que ela não tinha levado aquilo a sério ─ Ok! Às vezes eu implico com ela também, mas é só pra ver ela irritada! Você tem que admitir que na maior parte do tempo ela é quem vem caçar briga.

─ Justo. ─ disse Mildred, dando outro gole na cerveja ─ Acredita que quando eu cheguei no colégio eu achei que vocês eram amigas?

─ A gente meio que era. Lá pela quinta série a gente até ia uma na casa da outra. Acho que mais ou menos no ano que a Vix entrou na escola, foi quando a gente parou de se falar. Ela cresceu e virou popular, a rainha do colégio.  Já eu fui levada para o mal caminho por vocês. ─ falou com um ar sacana, recebendo como resposta a tampinha da cerveja de Mildred direto na testa. ─ Auch!!

─ Olha quem fala de mal caminho! Vai, para de enrolar, escolhe logo o que a gente vai assistir!

E com um resmungo de “folgada” Joanna voltou ao seu trabalho de escolher alguma coisa para assistirem.

 

─────────

 

─ Eu acho o Tris bonito... ─ dizia Mitsuha enquanto terminava de aplicar base nas unhas ─ ele tem todo aquele porte que faz ele parecer membro da realeza. Mas não sei se sairia com ele. Acho que é porque ele é nosso amigo há tanto tempo. Seria estranho, né?

─ Prefere sair com um inimigo, cheri? ─ perfuntou Cherry em tom jocoso, abaixando levemente uma revista de moda para poder olhar Mitsuha. A morena revirou os olhos e riu de leve antes de responder.

─ Você me entendeu! Mas e você?

─ Eu o que? ─ perguntou Cherry, pondo a revista sobre o colo.

─ Com que garoto da nossa escola você sairia?

Com um suspiro pesado, Cherry deixou o corpo cair para trás, deitando-se na cama e ficou olhando para o teto. Não deveria ser uma pergunta tão difícil de responder. Ela era linda, popular, inteligente. Em teoria qualquer garoto da escola iria querer sair com ela. O problema era ela que não via muita graça em nenhum dos garotos. Até já tinha saído com alguns atletas da escola, mas nenhum tinha prendido sua atenção tanto assim. Um tanto quanto frustrada em pensar aquilo, Cherry ficou um tempo olhando o teto antes de soltar um “oh”, quase pulando na cama.

─ Com certeza com o Bellamy Truscott!

─ O Bel? O capitão do time masculino de lacrose? ─ perguntou Cora, erguendo um pouco as sobrancelhas.

─ É! Ele é bonito, tem as notas mais altas da turma, é capitão da equipe, popular, tem praticamente uma vaga garantida para cursar medicina em Cambridge quando se formar. Acho que eu sairia com ele se ele me chamasse. ─ concluiu Cherry, sorrindo satisfeita com a conclusão que ela mesma tinha chegado.

─ É, ele é bem charmoso mesmo. Aquele amigo dele também é bem bonito...como é o nome mesmo? ─ perguntou Cora, voltando a pintar as unhas dos pés.

─ Donnie! ─ respondeu Mitsuha, abrindo um sorriso logo em seguida ─ Eu sou amiga dele. A gente faz aula de francês juntos. Ele é bem legal. E solteiro. Os dois. Até onde eu sei. Eu posso falar de vocês para eles.

─ Seria bem melhor do que meu último encontro. ─ falou Cherry com um sorriso curto e sofrido. Tinha saído por algumas semanas com Robert Jefferson, um dos garotos do time de rugby. Mas ele era burro de mais, obtuso de mais, grosseiro de mais. Obviamente nunca ia dar certo.

─ Do que vocês estão falando? ─ uma voz vinda da porta do quarto de Cora chamou a atenção das três. Bem, o vislumbre que Cherry teve dos olhos de Mitsuha brilhando como diamantes não deixou dúvida alguma sobre quem era. A ruiva olhou apenas por educação.

─ Ei Ash. Estamos falando de garotos. Quer conversar também? ─ perguntou Cora, com um riso maroto. Sem esboçar reação, Ashley balançou a cabeça negativamente antes de voltar a falar.

─ Não. Na verdade, uns amigos da faculdade me chamaram para ir num bar. Eu não queria ir, mas socializar faz parte da experiência da faculdade. Vocês tinham falado sobre sair de noite, então queria saber se vocês não querem ir também. Com mais gente, vai ficar mais fácil eu não ter que interagir com ninguém.

Cherry achava Ashley tão estranho. As vezes nem entendia como ele e Cora eram irmãos. Bem, chamavam eles de gêmeos por terem a mesma idade, mas eles não eram de fato gêmeos. O pai deles mantinha um relacionamento triplo com a mãe de Ashley e a mãe de Cora. Os dois nasceram quase ao mesmo tempo, filhos do mesmo pai mas de mães diferentes. E não podiam ser mais diferentes. Enquanto Cora, apesar de uma leve timidez, era mais comunicativa, Ashley as vezes parecia ser igual aos robôs que costumava programar. Era raro demonstrar emoções e as vezes até tinha uma leve inaptidão social. Parecia ter melhorado um pouco desde que tinha entrado para a faculdade, mas não tanto assim pelo visto.

─ SIM!! Q-quer dizer... ─ a empolgação de Mitsuha murchou ao notar que tinha exagerado um pouco na hora de confirmar presença, lançando um olhar de apreensão para as amigas. Cherry apiedou-se da amiga e tomou a frente.

─ Claro que vamos. Só nos dá um tempinho para nos arrumarmos, ok?

Novamente sem esboçar nenhuma reação, Ashley meneou a cabeça positivamente e deu as costas, se afastando do quarto. Tanto a ruiva quanto Cora olharam para Mitsuha que agora estava com o rosto enfiado num travesseiro, emitindo um ganido dolorido. Caindo na risada, começaram a puxar ela pelos braços na direção do banheiro, para começarem a se arrumar.

 

─────────

 

─ Para onde a gente tá indo mesmo?

A verdade é que o plano de ficar em casa enchendo a cara e assistindo filmes de qualidade duvidosa tinha falado miseravelmente. Depois dos trinta primeiros minutos de O Ataque do Tubarão de Duas cabeças, decidiram que não estavam chapadas o suficiente para assistir um filme tão cabeça. E por mais que massacrar Mildred no videogame sempre fosse uma atividade muito prazerosa, ficar em casa não estava rolando. Decidiram então sair sem destino. Ou não tão sem destino assim.

─ Tem um bar mais pra fora da cidade onde uns amigos meus costumam tocar. Sempre tem umas bandas legais e tal, a gente podia ir. ─ respondeu Joanna, dirigindo só com uma das mãos, apoiando o outro braço na porta da caminhonete.

Riverside era de fato uma cidade bem pequena. A maior parte do movimento da cidade ficava no centro, mas por conta de uma lei contra barulho, a maior parte dos bares dentro da cidade fechavam muito cedo. Então, depois de um certo horário, apenas os bares que ficavam mais na periferia, alguns até mesmo afastados da cidade, continuavam abertos. E eram de fato os melhores, já que ficavam longe da cidade e das vizinhas fofoqueiras. Cidade pequena, qualquer coisa vira assunto muito rápido. Não que Joanna se preocupasse muito com aquilo. Seus pais até teriam como saber as coisas que ela fazia, mesmo morando em outra cidade, já que vinham periodicamente visitar tanto ela quanto Jules, mas ela nunca deu muita importância para o que pensavam dela, mesmo que isso pudesse render algumas broncas.

Depois de algum tempo nas ruas da cidade, a distância entre as casas começou a aumentar um pouco. O bar não era tão fora assim da cidade, mas já ficava num ponto em que as casas vizinhas eram ligeiramente distantes dele. Era um dos points da cidade, em geral os adolescentes iam porque o controle era pouco e acabavam aceitando até as ID’s falsas mais vagabundas. E como era de se esperar de uma sexta à noite, o local estava lotado. Ainda assim Joanna conseguiu estacionar a caminhonete entre dois utilitários e desceu da cabine de um pulo, aproveitando o reflexo do retrovisor para dar uma última ajeitada no visual.

─ Uma pena Vix e Fani não poderem vir. ─ comentou Mild enquanto fechava a porta. Terminando de dar uma olhada no próprio reflexo e ajeitar o cabelo, Joanna trancou o carro antes de responder a amiga.

─ Eu também acho. Mas domingo a gente marca alguma coisa com elas. Vem, vamos passar no bar antes do show começar.

O local estava cheio de adolescentes com carteiras de identidade falsa e universitários que aproveitavam a folga antes do início do semestre para beber e curtir o som que em geral rolava por ali. Era possível ver alguns rostos conhecidos de pessoas que estudavam com elas aqui e ali enquanto se espremiam por entre os presentes. Joanna até acenava para alguns, dirigindo até um sorriso meio de canto na direção de uns poucos, afinal, a noite estava só começando e já que ela estava ali, por que não se colocar pra jogo?

─ Oiii! ─ disse Joanna ao chegar no bar, debruçando-se sobre o balcão, já com a ID falsa em uma das mãos ─ Dois mojitos, por favor!

Como esperado, o barman nem olhou sua ID. Falsa ou não, ninguém ali parecia se importar. Metade do público ali presente era menor de idade mesmo e os donos sabiam, mas o que a lei não vê, a infração não sente, então continuavam lucrando em cima deles sim. Assim que as bebidas chegaram, Joanna tratou de agradecer com seu sorriso mais simpático e pegar os copos, entregando um para Mildred. A garota agradeceu baixinho e tratou de dar um golinho enquanto olhava a região. Com um “hm” baixinho como se tivesse acabado de notar algo, cutucou o braço da amiga para chamar sua atenção.

─ Já viu quem tá aqui? ─ perguntou assim que Joanna voltou sua atenção para ela.

─ Quem? Cara Delevingne? ─ perguntou Joanna ficando na ponta dos pés para ver de quem se tratava.

─ Não, bocó! Até parece que se fosse a Cara eu ia te dar alguma chance de chegar nela antes de mim. ─ riu Mildred, dando uma cotovelada de leve em Joanna, que riu ─ Sua melhor amiga tá logo ali.

Pronta para dizer que sabia que sua melhor amiga estava ali, já que Mildred estava ao seu lado, Joanna ainda assim olhou para onde a morena lhe apontava. Não demorou a reconhecer Cherry, Mitsuha e Cora num canto com alguns garotos mais velhos.

─ Ei, aquele não é o Ash? O irmão da Cora? Wow, tem tanto tempo que eu não o via.

─ Haha. Até parece que ele foi a coisa que mais te chamou a atenção. ─ riu Mildred de forma sarcástica, dando outro gole ne bebida, olhando Joanna de canto. A garota de cabelo amarelo franziu a testa sem entender, o que fez Mildred revirar os olhos e resmungar um “esquece”.

Não deu muito tempo de argumentar ou perguntar alguma coisa. Os primeiros acordes de Sweet Child O’ Mine fizeram Joanna gritar e agarrar o braço de Mildred. Puxando a amiga na direção do palco, acabou passando na frente da mesa onde Cherry e os outros estavam enquanto cantava a música a plenos pulmões.

 

─────────

 

─ Aquela não é a Joanna?

A pergunta sem emoção de Ashley tirou Cherry da divertida conversa que estava tendo com um dos amigos universitários do Flume. Virou a cabeça a tempo de ver apenas os cabelos amarelos da cor de uma gema de ovo passando não muito longe deles, indo na direção do palco enquanto a voz da garota ressoava junto com a música.

─ É, é ela sim. ─ respondeu Mitsuha, se esticando um pouquinho na cadeira para poder ver a garota enquanto ela passava.

Cherry não evitou um leve revirar de olhos. A última coisa que esperava de seu começo de final de semana era ter que aguentar Joanna. Como se já não bastasse na escola. Voltou a focar sua conversa com o amigo de Ashley, mas acabou prestando atenção no que o Flume disse à seguir.

─ Ela está diferente. Acho que é o cabelo. Era vermelho sangue com mechas pretas quando eu fui para faculdade, né?

─ Eu sei lá. Ela muda aquele cabelo dela uma vez por semana. Não sei como não caiu ainda com tanta química. ─ resmungou Cherry meio sem perceber que tinha se metido no assunto. Coraline riu baixinho antes de falar para o irmão.

─ Ela e a Joanna não se bicam muito. Na verdade, elas são bem opostas, né?

Revirou os olhos de leve. De fato, ela e Joanna eram completos opostos em tudo. Joanna parecia viver uma vida livre de toda e qualquer amarra. Fazia o que queria, quando queria, como queria e obviamente isso metia ela em muita confusão. Cherry seguia um caminho pré-estabelecido desde sempre. Praticamente desde que nasceu ela tinha seu destino já traçado, com alguns pequenos ajustes no decorrer do caminho. Mantinha-se sempre dentro da linha, tanto para não atrapalhar seus planos quanto para não envergonhar seus pais. Não tinham, nem de longe, alguma semelhança.

─ Ela era legal. ─ disse Ashley, chamando Cherry de volta ao mundo ─ Lembro que ela me ajudou uma vez quando os jogadores de futebol furaram o pneu da minha bicicleta.

Meneando a cabeça negativamente, Cherry virou o rosto. Ok! Ela tinha sido legal! Mas a implicância era tanta que Cherry só conseguia pensar coisas como “deve ter feito isso só para se exibir”. Decidida a não ficar ali enquanto falavam bem de Joanna, murmurou um “desculpe” para o garoto com quem estava conversando e avisou rapidamente para Mitsuha que ia até o bar pegar uma água para beber.

Com o show começando, o bar estava um pouco menos caótico. Claro que ainda haviam pessoas ali, encostadas, conversando ou apenas bebendo mesmo, mas tinha bem menos gente ali. Ficou escorava no balcão esperando o barman servir a bebida de outra pessoa para então lhe atender. Não tinha pressa. Queria ter certeza de que quando voltasse para a mesa o assunto já fosse outro. Enquanto isso ia apenas ouvindo a música da banda. Não era exatamente seu tipo de música mas eles tocavam bem. Acabou até mesmo se perdendo um pouco no tempo em que estava ali. Só voltou um pouco à realidade quando notou pela visão periférica que alguém encostou ao seu lado.

─ Ei Cerejinha.

Revirar os olhos era quase natural para Cherry. Mas dessa vez foi com um pouco mais de vontade. Odiava aquele apelido. E odiava ainda mais a pessoa que usava esse apelido. Nem precisava olhar para o lado para saber quem era, reconhecia bem aquela voz. Por mais que quisesse ignorar, a educação não lhe permitia. Virou o rosto lentamente para encarar o garoto de ombros largos e braços fortes apoiado meio de lado no bar, olhando na direção dela. Ofereceu um sorriso nem um pouco sincero para ele antes de falar.

─ Robert.

─ Você nunca mais me ligou. ─ disse o garoto, levando uma garrafa de cerveja até a boca e tomando um gole antes de prosseguir ─ Achei que a gente tinha uma conexão.

─ Perdi meu celular. ─ se sentiu algum tipo de vergonha em mentir descaradamente? Nem um pingo. Não tinha perdido o celular coisa nenhuma. Da mesma forma como não tinham conexão alguma. Cherry tinha deixado bem claro para Robert que, seja lá o que eles tiveram, tinha terminado. Mas o garoto fazia a linha chato e insistente.

─ Oh, que pena. Bem, já que estamos aqui, você pode anotar meu número agora.

 

─────────

 

O show estava ótimo! Além de ser uma das suas bandas locais favoritas, ainda tocavam alguns clássicos do rock que Joanna particularmente amava. Depois de se esgoelar ao som de Back in Black e Iron Man, estava decididamente precisando de uma bebida. Deixou Mildred perto de uma das mesas e, prendendo o cabelo suado num coque alto e meio bagunçado, foi seguindo na direção do bar. Duas cervejas para dar aquela refrescada e assim poderem voltar mais para perto do palco, esse era o plano. Já estava quase chegando no bar quando rapidamente viu-se alterando seus planos.

─ Robert, eu já disse que a gente não tem mais nada para falar. Agora me deixa voltar para minha mesa?

Não que precisasse de fato olhar para saber quem era. Conhecia aquela voz irritadiça de longe. Em geral ela direcionava aquele tom irritado justamente contra si, então era novidade ouvi-la esbravejando com outra pessoa. Por curiosidade, acabou virando-se apenas para confirmar quem era.

─ Eu não tô fazendo nada de mais, Cerejinha, só quero bater um papo. ─ o garoto intencionalmente se mantinha na frente da ruiva para evitar que ela saísse. Cherry podia ser forte pela prática de esportes, mas o garoto era um verdadeiro guarda-roupa de tão grande.

─ Não me chama assim, eu odeio quando você me chama assim ─ dizia Cherry, quase que trincando os dentes ─ e sai da minha frente!

Nunca na sua vida pensou que fosse estar se movendo para ajudar Cherry. Ok, nunca abandonaria ela numa situação de necessidade. Podiam não se bicar mas Joanna jamais abandonaria alguém que precisasse de ajuda. Ainda mais se a ajuda significasse se livrar de um garoto chato e insistente. Como se estivesse chegando casualmente ali, passou por Robert para ficar ao lado de Cherry, com um sorriso irritante no rosto.

─ Opa, beleza? Talvez seja um pouco difícil de você entender, os cientistas já provaram que certas espécies de primata não conseguem compreender a linguagem humana, mas ela não tá querendo papo contigo, parceiro. ─ o garoto franziu a testa na direção de Joanna, claramente confuso com a chegada dela. Joanna achava uma graça como Robert parecia se esforçar para processar uma informação tão simples em seu cérebro.

─ Não é por nada não, ”parceira”, mas o papo aqui é de gente grande, ok? Não queremos nenhuma rascal se metendo nos nossos assuntos.

Joanna até podia ter ido embora. Se era um papinho entre populares, ela não tinha porque se meter. Mas quando olhou para Cherry, pela primeira vez em toda sua vida, ela parecia implorar para que Joanna não fosse embora. Respirando fundo, a garota voltou a olhar Robert, retomando aquele sorriso irritante antes de falar.

─ Então, ”parceiro”, eu estou pouco me fudendo para o que você quer ou não. Agora se me dá licença ─ e deu uma empurrada de leve no ombro dele para tira-lo do caminho, enquanto segurava Cherry pelo braço ─ Joanna Jones precisa salvar alguém do temível homem gorila. Achou ruim? Manda a sociedade protetora dos animais me processar!

E com um sorriso irônico, junto com um tchauzinho, foi saindo dali junto com Cherry. A ruiva lançou um olhar nada feliz na direção de Robert antes de seguir o passo da Lambert. Esperou estarem mais misturadas na multidão para soltar o braço da mão dela, mantendo a expressão emburrada.

─ Não que eu precisasse da sua ajuda, mas obrigada por me tirar de lá.

─ Você tem uma forma engraçada de agradecer. Mas ok. Não precisa agradecer. Odeio cara babaca. ─ disse Joanna e então Cherry notou o olhar preocupado da garota de cabelo amarelo ─ Você tá bem? Precisa de alguma coisa? Ele te machucou? A gente precisa dar parte na polícia? Chamo um guarda ambiental para informar que tem um animal perigoso à solta?

─ Não, eu estou bem. Ele só me chateou mesmo. Vou voltar para minha mesa.

O silêncio entre ambas a seguir teve aquela leve tensão constrangida. Ao invés de apenas seguirem seus caminhos, ficaram ali paradas por um tempo, trocando olhares vez ou outra até Cherry virar as costas e seguir para sua mesa. Joanna ficou parada onde estava, olhando as costas dela - talvez um pouco mais abaixo - até soltando um suspiro pesado enquanto observava os passos da Depardieu até ela sumir na multidão. Estava tão distraída observando Cherry andar que tomou um susto quando alguém tocou seu ombro.

─ Jô! Onde você estava? Eu fui te procurando no bar e não te encontrei, fiquei preocupada! ─ demorou para Joanna processar que era Mildred ali parada ao seu lado. Tinha esquecido completamente que tinha ido para o bar pegar cerveja para elas.

─ Oi? Ah! Claro! Foi mal, eu tive que resolver uma parada. Mas vem, vamos pegar essa cerveja. Ainda tem muito show!

Mesmo desconfiada, Mildred acabou murmurando um “ok” e seguindo para o bar com Joanna. Para a sorte da Lambert, logo a banda começou a tocar Beautiful Day, do U2. Foi o suficiente para varrer aquilo da mente de Mildred. Pegaram as cervejas e voltaram correndo para o palco. No caminho, Joanna olhou de forma nem um pouco sutil para a mesa onde Cherry estava, tentando ver se ela estava bem. Seus olhos se cruzaram por um instante, mas a ruiva logo desviou. Joanna sustentou o olhar por mais alguns segundos, mas logo voltou a apressar o passo para alcançar Mildred que já estava berrando a música perto do palco.

 

─────────

 

─ Cherry! Você demorou! O que aconteceu?

A preocupação na voz de Mitsuha era compartilhada pela expressão de Cora. Murmurando um “desculpa” baixinho, Cherry foi se aproximando, pondo o cabelo para trás da orelha. Na mesa só restavam Mitsuha, Cora e Ashley. Ainda olhou ao redor para ver se encontrava os amigos de Ashley ali, mas nenhum estava a vista.

─ Tive um contratempo, nada demais.

─ Está tudo bem mesmo? ─ perguntou Cora e Cherry respondeu meneando a cabeça positivamente ─ O pessoal foi para o palco aproveitar um pouco da música. A gente ficou te esperando para saber se você quer ir para lá também.

Até pensou em ir, mas no momento em que abria a boca, seu olhar acabou encontrando o de Joanna. Ela corria com Mildred na direção do palco. Sustentou o olhar no dela por alguns segundos, mas sentir a preocupação no olhar dela fez com que Cherry acabasse desviando os olhos.

— Na verdade não. Acho que quero ficar aqui um pouquinho. Mas podem ir se quiserem, eu não vou ficar chateada.

Ashley foi o primeiro a dizer que não iria. Por consequência, mesmo um pouco decepcionada, Mitsuha disse que também ficaria. Sem querer ficar sozinha lá na frente, Coraline acabou se juntando às amigas e ficando na mesa mesmo. Sentindo-se culpada por estragar o clima, Cherry até murmurou um “desculpa” para a amiga, que logo tentou puxar algum assunto para deixar claro que estava tudo bem entre elas.

 

─────────

Cansadas? Definitivamente estavam. Passava um pouco da meia-noite quando a banda encerrou seu show. Por mais que houvessem pedidos de bis – os meus eufóricos vindos de Joanna e Mildred – a banda acabou deixando o palco. Depois de conseguir o telefone do guitarrista e do baterista da banda, as duas foram se afastando do palco, mortas de cansaço mas definitivamente satisfeitas.

— Ui. Acho que desidratei agora. — dizia Mildred enquanto prendia o cabelo para poder abanar o pescoço, na tentativa de aliviar o calor. Joanna fazia mesmo, mas com um cubo de gelo que gentilmente roubou de um drink esquecido numa mesa, passando pela nuca.

— Nem me fala. Mais duas cervejas e vamos para casa?

Concordando sem nem pestanejar, Mildred seguiu Joanna na direção do bar. O local já estava bem mais vazio e era possível ver os funcionários já recolhendo algumas cadeiras. Conseguiram as duas últimas cervejas geladas do local e seguiram na direção do carro bebendo e cantando aos berros algumas das músicas que tinham ouvido naquela noite, as vezes caindo na gargalhada em algum momento. Porém, ao chegarem no carro, aquela alegria foi subitamente interrompida.

— Mas que porra!!

Os quatro pneus da caminhonete estavam furados. Arriados, na jante. Incrédula, Joanna andou ao redor do carro, esperando que por mágica aquilo se provasse apenas uma ilusão causada pelo álcool e que na verdade os pneus estavam intactos, mas o olhar estarrecido de Mildred deixavam claro que não era uma ilusão.

— Caralho. — disse Mildred, em choque. Parou ao lado de Joanna, olhando para um dos pneus antes de falar — Quem fez isso??

Joanna se manteve um instante em silêncio. Ficou olhando para o carro antes de olhar para os lados. Podia até ser ilusão sua, coisa criada por sua mente, mas teve quase certeza de ter visto não muito longe Robert encostado num carro com seus amigos, gargalhando bastante. Irritada, chutou a lataria do carro e resmungou baixinho por conta da dor que aquilo causou, antes de por fim falar.

— Eu tenho uma vaga suspeita.

 

─────────

 

Não costumava ficar tanto tempo fora de casa. Por ter uma rotina de treinos pelo lacrose e um horário de estudos bem rígido por conta das suas notas, em geral Cherry não era acostumada a ficar até meia-noite fora de casa. Por mais insistentes que fossem os pedidos dos amigos de Ashley para que eles ficassem – um dos garotos inclusive estava claramente flertando com ela a noite toda – os quatro foram unânimes em encerrar a noite. Ashley, inclusive, pareceu aliviado. Estavam quase chegando no carro da mãe dos gêmeos quando Cherry avistou uma Joanna com o celular no ouvido, andando de um lado para o outro parecendo irritada e Mildred sentada no para-choque da caminhonete, terminando de tomar uma cerveja, olhando a amiga andar de um lado para o outro.

─ Ei, Joanna.

Antes mesmo que Cherry pudesse impedir, Ashley se adiantou na direção da Lambert. Deixando o telefone momentaneamente de lado, a garota soltou um “Ash” baixinho, prolongando bastante o “A” antes de abraça-lo, sendo retribuída com alguns tapinhas desajeitados nos ombros.

─ Está tudo bem? Você parece estressada. ─ disse Cora chegando perto deles.

─ É, mais ou menos. Algum idiota furou os pneus da minha caminhonete ─ e lançou um olhar rápido na direção de Cherry que não demorou para entender quem tinha sido ─ aí eu estou tentando chamar um reboque, mas aparentemente nenhum está aberto!

─ A gente pode dar uma carona para vocês. ─ disse Mitsuha e Cherry teve que se controlar para não soltar um “não”. Além de não ser de bom tom, ainda era ingrato da parte dela. Tinha sido Joanna quem lhe ajudou com Robert e ela só estava naquela situação porque tinha ido lhe defender ─ aí amanhã você vem com o reboque buscar a caminhonete.

Desligando o celular, Joanna e Mildred trocaram olhares rápidos, numa conversa muda. Depois dos tradicionais “não precisa”, “não queremos atrapalhar” e “não vão atrapalhar nada”, acabaram aceitando a carona. O olhar de Cherry e o de Joanna cruzaram mais uma vez. Não chegaram a falar nada, exceto um “obrigada” baixinho que Joanna soltou antes de seguirem até o carro da mãe dos gêmeos.

<= Capítulo anterior

Próximo Capítulo =>

Comentários