O anúncio já tinha acabado há alguns minutos. Os alunos saíam das salas comentando sobre suas duplas. Algumas duplas até já saíam conversando sobre como fariam suas partes no trabalho. A maioria seguia já para o refeitório para poder almoçar. Mas não Cherry. Pegando um desvio por um dos corredores, ela se afastou da aglomeração. Seus passos eram rápidos e duros e ela parecia inconformada com algo. Quando o som das conversas ficou para trás, teve a clara noção de que havia um par de passos atrás de si, mas não olhou para trás. Apenas seguiu na direção da sala dos professores. Olhando sempre para frente, com o olhar meio duro, parou de frente para a porta e bateu duas vezes antes de receber a permissão para entrar. Fechou a porta rapidamente, como se temesse por seja lá quem fosse atrás de si entrasse também.
Não demorou para encontrar a prof. Mountbatten por ali. Ela conversava com o professor de química de forma descontraída enquanto guardava seu material. Ficou parada respeitosamente ali na entrada, pigarreando de leve e esperando ser notada.
— Ah, srta. Depardieu. Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou a prof. Mountbatten, ao virar-se para Cherry.
— Oui, digo, sim, professora. Eu queria muito sua ajuda. — disse Cherry. A professora meneou a cabeça positivamente e indicou para ela um dos escritórios para que pudessem conversar mais à vontade.
— Muito bem, no que posso ser útil? — perguntou a professor logo depois de fechar a porta, passando por Cherry para sentar-se do outro lado da mesa. Cherry nem titubeou nem fez nenhum rodeio.
— A senhora poderia mudar minha dupla?
A forma direta com que Cherry abordou o assunto pegou a professora um pouco desprevenida. Com a boca ligeiramente aberta, com um “ah” mudo preso ali, sem emitir som algum, demorou um pouco para conseguir processar o pedido antes de responder.
— Ahm... — a professora franziu um pouco a testa, olhando de Cherry para uma gaveta que já ia abrindo, tirando de dentro a mesma folha de A4 que tinha usado antes — me desculpe Srta. Depardieu, mas eu disse que as duplas seriam definidas por sorteio. Não faz sentido mudar sua dupla. Eu teria que fazer isso por todos.
— Mas ninguém precisa saber. Por favor professora, eu aceito fazer com qualquer pessoa. Ru aceito fazer até tudo sozinha! — praticamente implorava para a professora. Se achasse que funcionaria de alguma coisa, Cherry teria se ajoelhado no chão. Lexie olhou para a aluna com um ar bondoso, torcendo a boca um pouco para o lado antes de responder.
— Me desculpa, querida. Eu não posso fazer nada por você. Mas talvez seja uma boa oportunidade de resolver qualquer problema que possa haver entre vocês.
Cherry manteve-se sentada no mesmo lugar por um tempo, com a leve esperança de que a professora notasse sua insatisfação e isso a fizesse mudar de ideia. Mas claramente não estava funcionando. Derrotada, a garota levantou-se e, murmurando alguma despedida, saiu da sala. Com o passo bem mais lento e arrastado do que quando chegou, passou pela sala dos professores e seguiu para a saída, já sabendo o que lhe resperava.
Ela estava ali. Os cabelos coloridos enfiados dentro de uma touca surrada que lhe cobriam até as orelhas. Estava escorada na parede com os braços cruzados sobre o peito e parecia estar pacientemente esperando alguém. No caso, a própria Cherry.
— Sério? Precisava mesmo disso, Paris? — perguntou Joanna assim que viu Cherry sair.
— Você não vai estragar meu histórico nessa escola, Lambert. — disse Cherry, trincando os dentes. A garota de cabelo azul revirou os olhos com impaciência.
— E você acha que eu quero me ferrar nesse trabalho? Ah, por favor né? Eu sei que não é só isso. — concluiu se afastando da parede, indo na direção de Cherry.
— D-do que você está falando? — disse Cherry recuando um passo na direção da parede. Sentiu as costas baterem na superfície firme e não tinha mais para onde recuar.
— Eu não sei, Paris, isso tá tudo muito confuso pra mim. — apoiou uma mão pouco acima do ombro de Cherry, mais ou menos na linha de sua cabeça e foi se aproximando — Por que diabos do nada você saiu correndo para mudar sua dupla, como se eu tivesse uma doença contagiosa?
— E-eu sempre te tratei assim. — suas pernas começaram a tremer de leve, mas não era de medo. Havia algo queimando no fundo do seu estômago que ela só costumava sentir em situações como antes de um jogo ou na hora de receber uma nota numa prova em que tinha se saído muito bem.
— Mas agora piorou.
Cherry não conseguiu responder aquilo. Não que não tivesse resposta. Só não conseguia responder com Joanna tão perto. Havia uma parte do seu cérebro que mandava Cherry empurra-la para longe, mas outra parte estranhamente queria ficar ali. Essa mesma parte notava, de forma inconveniente, o quanto Joanna cheirava bem. Quando já sentia a respiração dela tocando sua pele, algo faz ela recobrar todos os sentidos.
— Cherry?
A voz de Bellamy vinha de longe, quase ao fim do corredor. Rapidamente conseguiu recuperar a consciência e empurrou Joanna para longe. Passou as mãos pelo rosto para espantar aquela sensação confusa e procurou de onde vinha a voz dele. Estava um pouco longe, esperava que não tivesse visto ou ao menos não tivesse tirado nenhuma conclusão precipitada sobre aquela cena. Quando olhou ao redor não encontrou mais Joanna, como se a garota tivesse simplesmente evaporado. Melhor assim.
— Ei, aconteceu alguma coisa? — perguntou enquanto se aproximava dela.
— Ahm? Não. Não aconteceu nada. Por que? — tentou soar o mais natural possível, até dirigindo um sorriso. Mas agora começava a notar como suas pernas tremiam.
— Nada. Jurava que você estava acompanhada. — disse Bellamy, dando uma olhada ao redor como se estivesse procurando alguém — Bem, já que não está, quer ir almoçar comigo?
Ela demorou mais do que gostaria para dar aquela resposta. Seu olhar ainda foi até onde Joanna estava há segundos atrás, como se ainda pudesse ver a garota ali. Sentindo a cabeça um pouco zonza, o coração acelerado e os pensamentos definitivamente confusos, Cherry meneou-a negativamente e voltou a olhar para Bellamy, sorrindo para o garoto.
— Claro! Seria um prazer!
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As aulas terminaram, mas isso não significava que o assunto sobre o festival tivesse terminado. Provavelmente ainda falariam bastante daquilo por um ou dois dias até se tornar apenas um trabalho. As rascals seguiam agora pelo estacionamento, na direção da caminhonete de Joanna, comentando sobre suas duplas escolhidas.
— Ao menos minha dupla é inteligente. Certeza que se eu não fizer nada ainda tiro um dez. — dizia Mildred enquanto seguiam pelo estacionamento junto com os outros alunos.
— Minha dupla tá mais interessada em bolar um baseado do que fazer o trabalho. Não que eu esteja reclamando, mas não quero bombar na matéria, sabe? — disse Videl enquanto ajeitava a mochila nas costas, tirando o cabelo de trás dela.
— A Bek tava triste né? Será que ela não gosta muito do Travis? — perguntou Fani enquanto chegavam até a caminhonete de Joanna. A Lambert não resistiu à uma risada, meneando a cabeça negativamente.
— Fani, você é um anjo, não mude nunca.
Confusa, a garota olhou para as outras três amigas, sem entender o motivo dos risinhos. Ignorando aquilo, foram colocando as mochilas na caçamba da caminhonete, preparadas para começar o final de semana. Videl pegou impulso e se acomodou ali também, enquanto Fani e Mild davam a volta para entrarem pela porta do passageiro enquanto Joanna abri a porta do motorista enquanto falava.
— E aí, o que temos para hoje? Tava pensando em passar naquele bar de novo na estrada pro lago.
— Parece uma boa, eu topo. — disse Mildred enquanto pegava impulso para subir na cabine, mas parando no meio do caminho — Mas talvez sua dupla tenha uma ideia melhor.
Joanna franziu a testa de leve, olhando confusa para Mildred antes de olhar para o lado. Cherry andava na direção delas parecendo bastante contrariada. Parou alguns metros de distância e ficou olhando Joanna de cara amarrada. Sem entender, Joanna olhou da ruiva para as outras amigas, que apenas deram de ombros.
— Acho que ela quer conversar. Pega. — e jogou a chave da caminhonete para Mildred, antes de seguir até Cherry, que continuava parada, os braços cruzados sobre o peito, bastante na defensiva — Seja lá o que for, não fui eu dessa vez.
Cherry revirou um pouco os olhos com impaciência antes de falar
— Não é sobre nada do que você fez ou não. Era só para avisar que temos reunião no colégio amanhã, para resolver as coisas do festival.
— Que horas? Porque eu ainda tenho detenção para cumprir. — disse Joanna se escorando no carro ao lado de Cherry, que bufou baixinho, passando a mão pelas têmporas.
— Pela tarde. Eu também tenho treino de lacrose de manhã. Melhor assim.
— Tá. Mais alguma coisa? Alguns gritos? Outro empurrão? Ou já posso ir embora? — perguntou Joanna, com um bastante cínico, até mesmo exibindo um sorriso. Cherry crispou os lábios e ficou um instante em silêncio antes de falar.
— Amanhã. Depois do treino.
E sem esperar nenhuma resposta de Joanna, deu as costas para a garota, saindo dali em passos rápidos e duros. Joanna ficou olhando a garota sair de perto, sem mover um dedo de onde estava. Até inclinou a cabeça um pouco para o lado enquanto observava a forma de andar de Cherry, só despertando quando ouviu a buzina da caminhonete. Dando uma última olhada na direção da ruiva, voltou até o carro, guinando-se para dentro da cabine e sentando em frente ao volante.
— E aí? O que ela queria? — perguntou Mildred sem nem esconde a curiosidade.
— Perguntar se você está livre na terça. Ela tá a fim de fazer um ménage com você e o cara com problema de acne do segundo ano, topa?
A gargalhada no carro foi geral. Mildred agarrou uma garrafinha de água vazia e jogou em Joanna, começando a rir logo depois de chama-la de otária. Engatando uma conversa sem noção sobre pessoas, famosas, ou não, com quem provavelmente topariam fazer um ménage, seguiram na direção da casa de Joanna. No meio do caminho o assunto provavelmente se perderia quando alguma delas começasse a cantar muito alto uma música pop, mas nem aquilo foi o suficiente para tirar da cabeça de Joanna o fato de que, de uma forma ou de outra, tinha um “encontro” com Cherry amanhã.
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Apesar do vento cortante, uma coisa ela tinha que comemorar: não tinha chovido naquele sábado. Quando o treino terminou, não precisou correr para guardar o material todo embaixo de um temporal. O suficiente para fazer sua cabeça dissociar dos acontecimentos da semana passada. Isso se não fosse...
— Quer uma ajuda?
Levantou os olhos para encontrar Joanna sentada numa das arquibancadas ao redor do campo de lacrose. Usava o mesmo colete da escola, só que dessa vez azul. Os cabelos estavam presos e enfiados dentro de um gorro, como se Joanna tivesse saído às pressas de casa sem tempo de arruma-lo e os olhos estavam cobertos por óculos escuros. Bufando baixinho, Cherry voltou a recolher as bolas dentro de uma sacola.
— Cansou do laranja? — perguntou numa voz ligeiramente irônica.
— Pois é, não realçava meus lindos olhos e nem combinava com as cores do outono. — a resposta de Joanna fez Cherry esboçar um sorriso. Mas por seu orgulho, disfarçou com uma pequena tosse antes de prosseguir.
— Pensei que tínhamos combinado de começar a fazer o trabalho do festival hoje.
— E eu estou aqui, não? Suuuper ansiosa para começar a costurar roupas, yey. — o tom dela deixava claro que Joanna não estava nem um pouco ansiosa para começar a costurar ou planejar o figurino. Cherry bufou novamente – coisa que fazia bastante quando Joanna estava por perto – antes de puxar a cordinha da sacola de bolas e fecha-la, levantando para finalmente virar-se para a Lambert.
— É e está claramente de ressaca. O que significa que deve ter ficado a noite toda enchendo a cara ontem. — falou em tom acusatório, estreitando os olhos na direção da outra, que ergueu as mãos em sinal de rendição.
— Culpada. Mas era sexta! Todo mundo bebe um pouco na sexta, não se faça de santa! — devolveu a acusação enquanto Cherry resmungava algo como “no seu caso não foi ‘um pouco’ “ bem baixinho — Eu já tinha marcado com minhas amigas e, acima de tudo, isso não tem nada a ver com você.
— Claro que tem a ver comigo! — retrucou Cherry, cruzando os braços sobre o peito, indignada — Eu disse que você não estragar meu histórico escol-
— Ah, corta essa, Paris! Eu já disse que também não quero rodar nessa matéria. Eu dou conta, ok? Não vou fazer você tirar um A- e manchar seu histórico perfeito. — cortou Joanna e tratou de cortar novamente quando ela fez menção de retrucar — Que tal a gente parar de enrolação, terminar isso e começar a fazer nosso trabalho? Hm?
Indignada por ter tomado uma “bronca” da pessoa mais irresponsável que conhecia, Cherry manteve o olhar sobre a Lambert por um bom tempo antes de bufar – novamente – e voltar a recolher o material. Alguns segundos depois ouviu o som de passos na grama e pelo canto do olho viu Joanna recolhendo os tacos e juntando-os no cesto. Ao final, seguiram para o armário de material esportivo e guardaram tudo no lugar. Depois de fechar a porta e trancar com a chave, Joanna girou o molho no dedo indicador e voltou-se para Cherry.
— Preciso só devolver isso na sala do zelador e aí a gente pode começar.
— Eu preciso tomar um banho. Não vou ficar o dia todo suada. Se deu demorar muito, me espera no teatro.
Com um leve “tanto faz” de Joanna, seguiram juntas até o meio do caminho, onde se separaram. O banheiro dos atletas fica mais ou menos perto da quadra poliesportiva, não muito longe do teatro da escola, então seria praticamente caminho no final das contas. Ainda haviam algumas equipes esportivas em treino, o que fazia com que os corredores da escola estivessem ao menos um pouco movimentados. Acenou no meio do caminho para alguns atletas da equipe de basquete que saiam com os casacos da equipe e as mochilas esportivas nos ombros enquanto seguia seu caminho, vez ou outra parando para alguns conhecidos mais próximos. Terminava justamente de trocar algumas palavras com alguns deles sem nem parar de andar para isso quando sentiu o corpo bater em algo grande, maciço e...molhado?
— Ei Cerejinha. Perdida por aqui?
Com uma carata e nojo, Cherry foi logo passando a mão pelo rosto, sem esconder o nojo. Pela voz e pelo odor, não precisava nem olhar para saber quem era e que estava encharcado de suor. Péssima hora de esquecer seu lencinho umedecido. Ela não estava nem de perto de estar limpa, afinal, tinha passado a manhã treinando, mas com certeza não estava como Robert.
— Vim fazer o trabalho do festival. — disse Cherry ainda com o nariz franzido pelo nojo, dando mais um passo para trás. Robert deu um sorriso malicioso, escorando o corpo na parede ao seu lado.
— Sabe o que isso está parecendo, Cerejinha?
— Não me chama assim, eu odeio quando você me chama assim. — murmurou Cherry entre dentes, fazendo questão de frisar o quanto odiava. Mas Robert pareceu ignorar aquilo.
— Apenas uma desculpa para me ver. — quando ele respondeu a própria pergunta, Cherry não evitou uma revirada de olhos bem demorada, até exagerada, para mostrar o quanto achava aquela afirmação absurda.
— Robert, por favor, vamos nos poupar disso? — o tom de voz de Cherry demonstrava bastante que ela estava exausta daquilo. Novamente Robert ignorou todos os indicativos.
— Ah, qual é Cerejinha...
— Eu já disse que od-
— você me quer, eu sei disso. Eu sou popular, você é popular. Eu seria o rei da escola se te pegasse. — e esticou uma mão para tocar a cintura de Cherry. Mas alguém foi mais rápida.
— Putz cara, sério que esse papinho aí funciona com alguém? Oi benzinho, demorei muito? — no momento não sabia qual das duas voz mais lhe irritava, mas sentiu-se agradecida ao notar que Joanna tinha chegado mais uma vez para lhe salvar — Desculpa, Donkey Kong, ela já tem companhia para hoje.
Não tinha ideia de como o rosto de Joanna estava, mas Robert estava perigosamente vermelho. Sentiu os dedos de Joanna exercerem uma leve pressão em sua cintura e entendeu como o sinal para saírem. Foram se afastando de Robert e só quando Cherry achou que seria seguro, resmungou para a Lambert, saindo de perto dela.
— Isso não era necessário.
— De nada, não precisa agradecer por te salvar d-
— Você ainda vai se ferrar muito, Lambert!! — gritou Robert, interrompendo as duas — E eu vou rir muito quando isso acontecer!
Joanna virou-se para olhar para Robert, com uma expressão indecifrável. Era difícil dizer se ela estava ou não levando a sério aquela ameaça. Torceu a boca um pouco para o lado e respirou fundo antes de falar.
— Desculpa, não entendi, tem como trazer algum interprete? Não sou fluente em RELINCHO.
E com uma risada exagerada, continuou o caminho com Cherry, deixando um Robert furioso para trás.
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— Você podia só dizer que a gente ia fazer um trabalho! — Cherry falava alto por estar irritada e por conta do som da água. Joanna estava sentada num dos bancos do vestiário, fora da área dos chuveiros. Olhava as próprias unhas com muito interesse enquanto movia os lábios de forma caricata, imitando Cherry sem a ruiva ver — Ele vai achar que a gente está num encontro!
— Bla bla bla. O problema de vocês populares é que você dão muita bola para o que gente idiota como o Robert pensa. — perguntou Joanna procurando uma lixa de unhas na mochila. Olha aquela cutícula, tava um caco! — Aliás o que você tinha na cabeça para sair com ele? Ele não consegue formular nem uma frase completa sem começar a zurrar.
— Com quem eu saio ou não, não é da sua conta. — disse Cherry fechando o chuveiro. Mentalmente completava com um “nem eu sei o que tinha na cabeça”, mas não daria o braço a torcer. Pegou a toalha que tinha deixado pendurada num gancho e se cobriu, antes de voltar para a vista de Joanna — Eu só não quero que ele saia por aí espalhando coisas que não existem.
— Seu problema é que as pessoas pensem que você está saindo com outra garota ou que tá saindo comigo? Porque eu ainda seria uma opção melhor do que sair com um troglodita. — Joanna ergueu o olhar para Cherry. Não ia negar que olhou tempo de mais ela enrolada na toalha, mas logo voltou a olhar para as unhas.
— Você não entenderia nem se eu explicasse. — resmungou Cherry enquanto pegava algumas roupas que sempre deixava no armário em dia de treino — Agora sai daqui para eu me trocar. Ou fecha os olhos.
— Não tem nada aí que eu já não tenha visto me olhando no espelho. — respondeu Joanna sem erguer os olhos das próprias unhas. Estranhou o silêncio e a falta de movimentação e quando ergueu o olhar Cherry lhe encarava com a maior cara de “sério?”. Revirando os olhos e resmungando um “ok” arrastado e bem demorado, Joanna fechou os olhos e, só para garantir, ainda colocou as mãos sobre eles.
Não ia negar uma pequena curiosidade. Depois de uns 10 segundos abriu um olho e entreabriu os dedos, olhando pela fresta entre eles. Todos aqueles anos de lacrose tinham feito um bem danado. Teve que se segurar para não soltar um assobio de admiração. Mas não conseguiu conter uma risadinha que acabou chamando a atenção de Cherry. Fechou os dedos e os olhos, parecendo uma criança grande demais pena no flagra tentando parecer inocente. Não demorou muito para Cherry anunciar que já estava pronta. Ela mantinha a expressão emburrada, mas havia um pequeno vestígio de sorriso no canto de seus lábios, como se ela tivesse recém sorrido com algo, mas não quisesse demonstrar. Joanna notou aquilo, mas achou melhor não comentar.
Já de banho tomado, Cherry sentia-se pronta para encarar qualquer coisa. Até mesmo uma tarde com Joanna Lambert fazendo trabalho do festival. Ainda haviam algumas pessoas no backstage do teatro quando elas chegaram. Gente do clube de teatro e até mesmo alunos já adiantando projetos do festival, mas pouco mais de meia-hora depois delas chegarem, todo mundo foi dispersando. Até mesmo o zelador que chegou para arrumar tudo após a reunião do clube já tinha ido.
— O vestido da Iseult devia ser nosso foco. Figurino medieval masculino não é tão difícil, mas os vestidos daquela época eram enormes. — dizia Cherry enquanto debruçava-se sobre um livro que tinham pego na biblioteca. Eram gravuras que representavam roupas usadas por nobre na idade média.
— Não é só meter ela dentro de um vestido daqueles grandões? Acho que minha mãe tem um, pouparia muito trabalho... — dizia Joanna deitada sobre uma mesa. Jogava uma bolinha daquelas anti-estresse para cima e pegava no ar antes que acertasse seu rosto. Tinha se livrado da touca e agora os cabelos de cor lilás meio embaraçados caiam para os lados. Cherry revirou os olhos de leve antes de seu olhar cair sobre Joanna.
— Não é simplesmente enfiar ela dentro de um vestido! Pelos céus, Lambert, você disse que não queria rodar nessa matéria!
— E não quero! Só parece bem simples pra mim. — deu de ombros antes de voltar a jogar a bolinha para o alto.
Cherry manteve os olhos na Lambert por um instante antes de fechar o livro. Caminhou até a garota e pegou a bolinha no ar antes que chegasse em Joanna, que ficou um instante com a mão ainda no ar, esperando para pegar a bolinha, antes de baixa-la.
— Esse é seu problema, Lambert, para você tudo sempre parece simples. Alerta de spoiler? Nem tudo é tão simples!
— Não, Paris... — disse Joanna enquanto se levantava, ficando sentada na mesa, de frente para Cherry — o SEU problema é sempre complicar as coisas. Sempre querendo encontrar um grande significado, fazer um grande gesto, uma grande atitude, tornar as coisas com um grande acontecimento, algo para chamar a atenção de todos, estar no centro das atenções como se você precisasse! Tudo nessa escola giraam redor de você dos seus amigos. Sabe...as vezes um vestido é só um vestido! Não precisa fazer algo gigantesco só pra tirar um A que você provavelmente já vai tirar mesmo.
— Nem sempre um vestido é só um vestido! — como sempre Joanna ia lhe tirando do sério. Como alguém poderia ser tão desleixada daquele jeito?? — Às vezes um vestido pode significar muita coisa! As vezes um vestido pode nos deixar confusa e frustrada durante a noite toda porque não sabemos se queríamos ou não o vestido e ficamos a noite toda acordada pensando no vestido e não podemos esquecer o vestido porque o vestido está em todo lugar que a gente vai e até mesmo aparece com outras pessoas!
— Do que você está falando? — perguntou Joanna claramente confusa sobre onde aquela história iria parar. Aquilo pareceu deixar Cherry ainda mais irritada.
— Você me beijou!! Sem a minha permissão!
— Ah, qual é Paris, então é por isso que você vem surtando a semana toda? — perguntou Joanna, revirando os olhos de forma exagerada — Foi só um selinho! Por Deus, você é muito dramática!
— Eu não sou dramática! Eu só não quero que ninguém ache que eu estou com uma...
— Com uma o que, Paris? — perguntou Joanna, indo mais para a ponta da mesa, ficando mais perto de Cherry — Com uma garota? Com uma rascal? Hm? Ou especificamente comigo? Porque se seu problema é comigo você deveria parar com esses rodeios, surtos e metáforas com vestidos e dizer na minha cara qual o seu problema.
Aquela garota lhe irritava! Estavam tão perto que Cherry podia sentir o cheiro dela, até mesmo o calor que emanava dela. E tinha certeza que o ódio que sentia fazia emanar muito calor, o suficiente para que Joanna também sentisse. Estava tão irritada naquele momento que poderia fazer muita coisa. Poderia gritar com ela, poderia empurra-la, poderia sair dali xingando Joanna. Ou até mesmo...
Fazer uma grande besteira.
A distância entre elas rapidamente tornou-se nula. Joanna ficou claramente surpresa com aquilo. Certamente esperava que Cherry lhe desse um soco ou agarrasse seus cabelos e começasse uma verdadeira cena. A última coisa que esperava era aquilo. Tanto que demorou para corresponder ao beijo. Mas não o suficiente para perder o momento. Puxou ela mais para junto de si com as pernas, enquanto os braços passavam por seu pescoço, diminuindo ainda mais a distância entre elas.
Uma luta enorme ocorria agora no interior da Depardieu. Um lado do seu cérebro gritava perguntando o que diabos ela estava fazendo. Beijando Joanna Lambert, não apenas a rascal mais odiada por ela como uma GAROTA! Cherry não beijava garotas. Cherry tinha ensinada desde muito nova que aquilo era errado. Que homens deviam se relacionar com mulheres e vice e versa. Qualquer coisa fora daquela lógica era errado.
Já o outro sussurrava constantemente em seu ouvido lhe informando como aquilo era bom. Era um péssimo momento para notar que Joanna beijava bem, o quanto cheirava bem, o quanto aquilo causava uma queimação gostosa em seu estômago e, principalmente, o quanto queria prolongar aquilo, seja lá por quanto tempo durasse.
Não soube dizer quanto tempo ficaram naquilo, mas quando finalmente teve que buscar ar, seus lábios estavam um tanto quanto sensíveis. Ainda sentia as mordidinhas que ela tinha lhe dado ali formigando de leve e sentia um ódio mortal de si por querer mais daquilo. Ofegantes, ficaram se olhando ali. Deveria se sentir culpada pela satisfação que cresceu em seu peito quando notou que aquilo tinha afetado tanto a Lambert quanto ela? A garota estava ofegante, com os lábios avermelhados e claramente confusa. Seus braços e suas pernas acabaram por soltar Cherry que demorou alguns segundos para notar que não estava mais presa à Joanna. Ficou olhando em seus olhos por um bom tempo, sem saber exatamente o que fazer. Foi quando seu cérebro estalou e ela fez a única coisa que conseguiu no momento.
— Tchau.
Deixando seu material, sua bolsa, o livro e, principalmente, Joanna, saiu correndo dali sem olhar para trás em momento algum.
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