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Capítulo 1

O céu estrelado se abria diante de seus olhos. A pequena Cherry, de seus oito anos, estava largada na grama, as mãos atrás da cabeça enquanto observava cada estrela como se fosse um entre tantos pontinhos num jogo de ligue os pontos. Seus cabelos ruivos formavam cachinhos nas pontas e ela verdadeiramente parecia uma bonequinha.

Olha! Aquela ali! Parece um cachorro!

Ao seu lado uma garotinha da mesma idade, cabelos loiros esparramados pela grama. Já dava para ver que, mesmo tão nova, as pontinhas do cabelo já estavam pintadas de roxo. Seu rosto sardento se abria num enorme sorriso faltando um dente da frente, já sendo possível notar o crescimento de outro rompendo a gengiva. Ela mantinha uma mão sobre a barriga e a outra apontando para o céu, se movendo como se de fato estivesse ligando os pontos.

Cherry acompanhou o movimento da garota, tentando imaginar a forma de um cachorro ali diante dela e acabou rindo. Não sabia se de fato havia um cachorro ali ou Joanna tinha lhe feito enxergar um. Depois de um tempo olhando a recém descoberta constelação do cachorro, Cherry virou-se de bruços para poder olhar melhor para Joanna.

Quando eu crescer acho que gostaria de ser astronauta. disse Cherry, com os olhinhos brilhando de forma sonhadora Só pra ver as estrelas mais de perto!

Hmmm…eu não sei…se você for pro espaço, vai ter muito espaço pra competir com essa sua cabeça oca! falou Joanna com um ar de brincadeira, recebendo um olhar escandalizado da pequena Cherry, que começou a lhe empurrar e lhe cutucar com a ponta do seu dedo fininho Ai, para, para, PARAAAA EU TAVA BRINCANDOOOO!

Agora é tarde, Joanna Lambert, você se prepare para pagar o preço! dizia Cherry, entre risos, enquanto ia cutucando a cintura de Joanna que se dobrava de rir.

Entre risos, gritos, pedidos de rendição e gargalhadas, as duas se embolaram na grama até estarem com os cabelos cheios de grama, e claramente sem fôlego. Pararam uma em cima da outra, Cherry deitada atravessada sobre a barriga de Joanna, completamente descabelada. A Lambert estava sem fôlego, com o rosto vermelho e mole, como se tivesse sem forças.

Você é injusta, Cherry Depardieu disse Joanna, a medida que recuperava o fôlego.

Eu sei. disse Cherry com um arzinho de riso, olhando para Joanna com aquela carinha travessa que logo se desfez numa expressão séria Nós vamos ser amigas para sempre, né?

Joanna fez uma expressão pensativa como se aquela fosse uma questão muito difícil de responder, o que rendeu mais um pequeno ataque de Cherry. Poucas risadas depois, Joanna conseguiu afastar a ruiva.

Tá bom, tá bom, eu tava só brincando! disse Joanna, ainda rindo Claro que seremos, boboca.


O som do alarme do celular fez Cherry despertar daquele sonho no instante em que olhava nos olhos de Joanna. Acordou meio assustada, encarando o teto diante de si, um pouco aturdida. Aos poucos, quando sua respiração acelerada voltou ao normal, escondeu o rosto entre as mãos e ficou assim um bom tempo antes de finalmente se levantar.

Era meio de dezembro e Riverside já estava coberta por uma grossa camada de neve. A paisagem de casas branquinhas com neve acumulada no telhado fazia até parecer um local saído de um cartão postal. Empregados e moradores se misturavam nas frentes das casas tentando tirar o excesso da neve que caiu na noite anterior das calçadas e do jardim enquanto os caminhões limpa-neve faziam seu trabalho limpando as ruas.

Cherry observava distraidamente o movimento no andar de baixo, mas sua cabeça estava mesmo no sonho que tivera.

Desde que Joanna tinha ido embora, em novembro, tinha se tornado comum Cherry sonhar com a infância delas. Quanto mais ela relembrava o tempo em que ela e Joanna eram amigas, mais ela se perguntava por que tinham se afastado. Mais do que isso, era um lembrete constante do quanto sentia falta dela.

Seu olhar acabou indo até o calendário pendurado ao lado da sua cama. Os dias de novembro até dezembro estavam riscados, numa contagem regressiva para o retorno de Joanna. Sabia que logo após o feriado de final de ano ela estaria de volta e só de pensar que agora estava mais perto do que longe, seu estômago chegava a fervilhar.

Ma petit Cherry, já está pronta? — a voz do seu pai arrancou ela de seus devaneios. Até pulou assustada, como se ele estivesse ali ao seu lado, mas não havia ninguém ali — Não posso me atrasar hoje, tenho uma reunião importante.

— Já estou terminando, papa. — disse Cherry enquanto corria para tomar um banho rápido.

Com toda aquela neve, até mesmo a disposição de Cherry para andar até a escola diminuía bastante, então a garota aproveitava sempre alguma carona com seu pai ou pedia para o motorista levá-la. Sabia que seu pai era um homem bastante ocupado, então tentava por tudo não atrasar ele. Então, quinze minutos depois, ela já estava vestida para a escola, usando uma grande quantidade de casacos para suportar o frio. Abraçada com sua mochila, sentou no banco do passageiro e colocou o cinto, acompanhando pela janela o cenário branco da cidade que despertava sonolenta naquela manhã de inverno

— Pensei em chamar o Bellamy para jantar amanhã, o que acha querida? — perguntou Patrick, os olhos sempre atentos ao caminho.

Cherry soltou um suspiro pesado, tentando, por tudo, esconder seu desânimo.

Durante muito tempo imaginou como seria namorar com Bellamy. Sempre fantasiou passeios no parque, idas ao cinema, conversas em algum bistrot gourmet, risadas. Mas estava bem longe de ser tudo o que Cherry imaginava. Apesar de parecer sempre querer ser visto com Cherry em público, os dois acabavam saindo bem pouco sem outras pessoas ao redor. Bellamy estava sempre ocupado com alguma atividade da escola e tinha pouco tempo para Cherry.

No fundo ela queria se sentir frustrada e chateada com isso, mas a verdade é que tudo o que ela conseguia sentir era indiferença.

Ainda sentia muita saudade de Joanna, mas depois da primeira semana após a partida dela, Cherry decidiu que tudo o que podia fazer era seguir com a vida. Afinal, tinha aceitado namorar com Bellamy e mesmo tendo consciência do que sentia por Joanna, tinha ao menos que tentar. Mas depois de insistir tanto e ter tão pouco interesse vindo de Bellamy, Cherry apenas desistiu de tentar. A maior parte do tempo que ficavam juntos era durante o intervalo das aulas, quando tinha muita gente vendo. Bellamy parecia sempre muito satisfeito, como se tivesse conquistado um grande troféu. Já Cherry não poderia parecer mais infeliz a cada dia que passava.

— Ah. Claro, papa. Seria ótimo! — a expressão de Cherry mudou rapidamente da apatia para uma fingida animação que logo retornava para a apatia no segundo seguinte enquanto ela voltava a olhar para o lado de fora.

Seu pai, ao contrário de Cherry, parecia empolgado demais para notar que havia algo de errado no relacionamento dos dois. Na verdade ele parecia tão satisfeito que sua filha estivesse namorando o padrão de relacionamento que eles tinham traçado para ela, que mal parava para notar o quão infeliz Cherry estava. Por seu lado, Cherry nada falava. Seus pais estavam felizes, então isso devia ser o suficiente para ela.

Seu pai ainda fazia os planos para o jantar quando o carro parou na frente da escola. Cherry despediu-se rapidamente e saltou para fora do carro o mais rápido que podia para não ter que ouvir mais nada daquilo. Atravessou o estacionamento em passos rápidos e só relaxou quando estava abrigada no calor e pôde livrar-se da primeira camada de casaco.

— Cheeeeer! Ei! — dizia uma animada Mitsuha que vinha pelo corredor ao lado de Cora, que tinha o rosto bastante vermelho por conta do frio.

— Bom dia, meninas. — saudou Cherry, terminando de guardar o casaco dentro da mochila — Você parece animada. O que aconteceu?

O rosto de Mitsuha se tornou automaticamente vermelho e Cherry tinha certeza absoluta de que não tinha nada a ver com o frio. A garota enfiou o rosto entre as mãos, tentando esconder o ataque de risinhos que lhe acometia. Coube à Cora, depois de algumas cotoveladas de leve na amiga, informar o motivo da animação de Mitsuha.

— O Ash vem passar o feriado de final de ano em casa e eu convidei a Mit para passar o fim de ano com a gente.

Com um “ah” de compreensão, Cherry virou o olhar para Mitsuha, sorrindo de forma carinhosa. Sabia o que a amiga sentia por Ashley e não era de hoje. Sabia também que Mitsuha jamais teve coragem de revelar nada para o garoto e ficou muito triste quando ele largou a escola para começar a faculdade. Isso pareceu criar um abismo gigante entre os dois e Mit nunca foi capaz de transpôr ele.

— Deveríamos fazer uma festa de final de ano, o que acham? — sugeriu Cherry, sentindo como se uma lâmpada tivesse acendido sobre sua cabeça — Só nós, uma festa nossa. Poderíamos falar com o Travis e perguntar se podemos usar a casa dele no Lago Emerald novamente, o que acham?

— Eu concordo totalmente, inclusive já podem considerar o local reservado!

A voz de Travis surgindo atrás delas fez as três darem um pulinho assustadas. O garoto parecia sorridente como nunca e seus olhos brilhavam como se ele tivesse visto a luz do sol pela primeira vez em muitos dias. Ao seu lado vinha Tristan com uma garota um ano mais nova, de cabelos escuros e longos e olhos azuis. Era muito comum ver Iseult usando vestidos longos, quase medievais, chegava a ser estranho vê-la usando roupas comuns.

— Ei Travis. Você parece bastante feliz hoje! — comentou Cora, depois de recuperada do susto.

— E estou mesmo! — a felicidade de Travis era tão radiante que até transmitia um pouco para os outros. Até mesmo Cherry se sentiu um pouco feliz ao vê-lo daquele jeito — Minha namorada conseguiu a transferência dela para Riverside! Ela deve chegar antes do natal!

Cherry sabia que Travis namorava uma garota antes de vir da Coreia do Sul. Os dois namoravam praticamente desde o ensino fundamental e nunca pensaram em se separar, até que os pais de Travis decidiram se mudar para Riverside. Desde então eles tentavam manter contato sempre através de telefonemas ou chamadas de vídeo, mas a diferença de fuso acabava atrapalhando bastante.

— Wow! Isso é ótimo, Travis! — disse Mit, que ainda parecia radiante por conta da vinda de Ashley — Ela já pode chegar para nossa festa de ano novo!

— E pelo que eu posso notar, vai ser quase uma festa de casais, hm? — perguntou Tristan enquanto virava o rosto para dar um selinho demorado em Iseult.

Tristan e Iseult tinham começando a namorar há duas semanas. Cherry tinha a suspeita de que eles só tinham oficializado o namoro há duas semanas, mas o envolvimento deles já vinha de mais tempo. Ficava feliz pelo amigo. Nunca tinha visto ele tão feliz e bem disposto em toda sua vida. Sabia o quanto a vida dele costumava ser pesada com as cobranças do pai, era bom vê-lo leve daquele jeito.

Mas para falar a verdade, aquela conversa sobre uma festa de casais lhe deixou ligeiramente desconfortável. E olhando bem, notou que não era a única. Cora deixou de sorrir e passou a olhar para os lados inquieta. Sabia o que devia estar se passando na cabeça da amiga. Por mais que Ashley e Mitsuha não fossem um casal, todos esperavam que fosse. E mesmo Cherry estando tão infeliz com seu namoro, ainda tinha Bellamy. Imaginava o quanto ela deveria estar se sentindo excluída no momento.

— Eu vou guardar as coisas no meu armário. — foi a desculpa que Cherry conseguiu pensar para sair de perto dos amigos enquanto eles discutiam sobre a festa — Cora, você também não quer vir?

A garota ainda olhava desconcertada para os lados, então demorou para notar que Cherry falava com ela. Despedindo-se de forma apressada dos outros, saiu ao lado de Cherry, parecendo relaxar um pouco a postura a medida que estavam distantes da conversa.

— Eu sei que deve estar sendo difícil para você… — disse Cherry, pondo a mão no ombro dela, apertando carinhosamente.

— Olha, Cher…sem querer ser grossa, mas você não entende. — disse Cora, parando de andar quando estavam longe o suficiente, encostando-se num armário — Nenhum de vocês entende.

Cherry olhou com certa pena para a amiga. Coraline era tão linda, inteligente e popular quanto todos do grupo. Era parte do clube de debate e tinha inclusive feito parte da delegação de Riverside que representou o país na simulação diplomática da ONU. Tinha boas notas, era divertida, carismática e Cherry sabia que vários garotos davam em cima dela, mas ela estava longe de parecer interessada em algum deles.

— Eu posso te apresentar o Donnie, o que acha? — perguntou Cherry, sorrindo. Parecia uma ideia excelente na cabeça da Depardieu, mas não foi o que ficou demonstrado no semblante de Cora.

— Cherry, eu agradeço muito, mas você não pode me ajudar. — disse Coraline, murchando novamente, parecendo mais  triste do que antes — Vocês nunca entenderiam.

— Então me ajuda a entender, Cora. — disse Cherry, sentindo uma certa agonia. E de repente ela soube como tinha sido frustrante para Joanna.

Coraline abriu a boca diversas vezes, mas pareceu mudar de ideia no meio do caminho, fechando-a novamente o tempo todo. Cherry via uma certa agonia em seu olhar e parecia prestes a chorar, quando mais alguém entrou no corredor.

As três garotas conversavam de forma barulhenta. Mildred ia na frente, andando de costas para poder olhar as amigas enquanto comentavam algo completamente aleatório. Videl, a mais baixinha, vinha atrás. Os cabelos antes pintados de azul agora estavam loiros, quase platinados e ela parecia rir escandalosamente de algo que Mildred tinha dito. Ao seu lado vinha Bekai que ria de forma mais contida, os cabelos presos em duas maria-chiquinhas caindo por cima dos ombros. 

Ainda era estranho ver as rascals sem a presença de Joanna. Era como olhar durante anos para uma constelação estelar e, de repente, uma estrela simplesmente desaparecer. Com um pequeno aperto no coração, Cherry desviou o olhar delas.

Daria tudo para que ela estivesse ali de volta.


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