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Capítulo 2

— Vocês viram o cartaz?

— Ai eu com certeza vou querer ir!

— Eu tenho que correr atrás de um vestido!

— Do que esse povo tá falando? — perguntou Tristan enquanto seguia ao lado dos amigos pelo corredor. Havia uma pequena aglomeração ao redor do quadro de avisos.

Cherry ergueu as sobrancelhas ligeiramente curiosa. Tentava enxergar por cima das cabeças que se aglomeravam, mas nem ficando na ponta dos pés ela conseguia ver o que havia de tão interessante. As garotas se afastavam com risinhos, cochichando umas com as outras enquanto os garotos pareciam ligeiramente tensos. Alguns debatiam seriamente uns com os outros e lançavam olhares furtivos para grupos de meninas que continuavam com suas risadinhas.

— Eu não consigo enxergar nada daqui! — dizia Mitshua, que era menor do que Cherry, tentando enxergar por entre os ombros dos alunos, sem sucesso.

— Ei pessoal. — dizia Travis que saía do bolinho de alunos ao redor do quadro de avisos — Vocês já estão sabendo?

— Sabendo do que? — perguntou Tristan, olhando curioso para o amigo. Pouco depois Iseult saiu do meio do aglomerado também, juntando-se a eles.

— O baile que vai ter na antevéspera de natal! — anunciou Iseult, o rosto afogueado e o sorriso ansioso dançando em seus lábios.

O murmúrio confuso de “baile?” permeou o grupo por um instante, antes que todos parecessem mais animados com a ideia. Aos poucos os alunos foram saindo da frente do quadro e puderam ver o cartaz em tons azul e branco com a imagem de um casal em roupas de gala dançando. Em cima, em letras elegantes e rebuscadas era possível ler “SNOW BALL” e mais abaixo a data e o horário completo.

— Mas de onde o diretor tirou essa ideia? — questionou Cherry enquanto dava uma boa olhada no cartaz. Todos poderiam levar um acompanhante. Seu estômago deu uma ligeira embrulhada mas ela conseguiu desviar os pensamentos rapidamente.

— Ah, eu gostei! — disse Mitsuha, parecendo bem animada — E romântico! É na véspera de natal, vai ser lindo!

— Acho que não vamos demorar para ver alguns convites acontecendo. — disse Tristan, recebendo uma cutucada de leve de Iseult.

— Inclusive espero que você capriche no seu!

Apesar de rir da colocação de Iseult, Cherry sentiu um pequeno aperto na boca do estômago. Queria muito que Bellamy lhe convidasse de forma mais contida, sem chamar tanta atenção, mas conhecendo o namorado como conhecia, tinha certeza de que já poderia esperar algo grandioso e que fosse chamar muita atenção. Sem que percebesse, sentia o rosto já esquentar antecipadamente.


─────────


Como Tristan tinha previsto, não demorou muito para começarem os primeiros convites. Antes mesmo do almoço já tinham presenciado alguns pedidos que iam dos mais tímidos aos mais chamativos. Claro que a maior parte das pessoas aceitava o convite, mas havia aqueles momentos constrangedores em que alguém era rejeitado. Nesse momento, após um “uuh” coletivo, as pessoas costumavam dispersar num imenso sentimento de vergonha alheia, entre risinhos e olhares piedosos.

Até o momento Cherry tinha passado incólume de qualquer pedido de Bellamy, mas ela sabia que era só questão de tempo. Apesar de apreensiva e evitando por tudo passar muito tempo nos corredores, justamente para evitar o espalhafato do namorado, ainda assim ela olhava duas vezes por cima do ombro, com algum receio. Ainda assim, acompanhou Mitsuha dispensar ao menos dois garotos que lhe chamaram para ser seu par no baile. Cherry sabia que ela esperava que Ashley lhe acompanhasse. Curiosamente Cora também recusou alguns convites. Depois de toda a conversa que tiveram pela manhã, Cherry acreditava que ela talvez se sentisse feliz em ter um par, o que só deixou Cherry mais confusa em relação à amiga. 

— Vocês vão me ajudar a pensar em alguma coisa para a Iseult, não vão? — perguntou Tristan, enquanto sentava aparentemente desesperado na cadeira em frente onde Cherry estava sentada.

— Claro que vamos, Tris! — apressou-se Mitsuha, parecendo bastante determinada.

— Você deveria pedir ajuda para o Bel… — disse Cherry, tentando esconder um pouco o azedume em sua voz. Que aparentemente não foi notado por Mitsuha.

— Ai Cher, como será que ele vai te convidar? Eu aposto que vai ser algo grandioso!

Os olhos de Mitsuha brilhava enquanto ela especulava como seria o convite de Bellamy, mas o sorriso de Cherry foi tão apagado que foi uma surpresa a garota não ter notado. Seus olhos encontraram os de Tristan que lhe observava com certa cautela e preocupação, mas quando foi flagrado, tratou de desviar.

Para a sorte de Cherry, o prof. Frezzi chegou pouco depois para dar início à aula de química. Enquanto tirava o material da mochila, sentiu algo ser colocado sobre sua mesa, franzindo a testa ao encontrar um bilhete bem dobrado colocado ali. Abriu com cuidado e reconheceu a letra caprichosa de Tristan.


Se precisar conversar


Respirando fundo, Cherry olhou por cima do ombro para o amigo e tentou sorrir de forma confiante, mas o olhar preocupado dele denunciava que sua tentativa não tinha sido tão boa assim. Voltou a olhar para frente enquanto o professor retomava de onde tinham parado na aula passada, começando a anotar como forma de fugir daquele assunto.

Eles não entenderiam, pensou com um aperto no coração. E de repente suas sobrancelhas ergueram e ela ajeitou a postura na cadeira, olhando disfarçadamente para Cora, por cima do ombro. Começou então a tirar algumas conclusões sobre o que estava acontecendo com a amiga. Só não sabia até que ponto estava certa.


─────────


Estava parada na frente da porta da casa de Joanna já há alguns minutos. Tinha tocado a campainha mas ninguém tinha ido atender. Ligeiramente irritada, tocou a campainha mais algumas vezes até que finalmente a porta se abriu.

Que? É domingo, o que pode ser tão urgente??

A puberdade tinha começado a agir. Tinha 11 anos e o rosto pontuado de espinhas, além de um aparelho fixo em seus dentes . Os cabelos já não eram loiros desde o ano passado. Agora eram de um rosa meio opaco, pintado com papel crepom. Usava uma camisa muito larga para seu tamanho e nem sabia se ela estava usando algo por baixo, porque a camisa chegava até seus joelhos, mesmo que o surto de crescimento tivesse feito Joanna crescer muito desde o ano passado.

Eu fiquei de vir aqui hoje, não lembra? Perguntou Cherry, sem esconder a pequena irritação. Ao contrário de Joanna, estava impecavelmente bem arrumada. A pele era lisa e desprovida de qualquer espinha, fruto de muito cuidado e dos produtos mais caros que o dinheiro pode comprar.

Não? era uma afirmação em forma de pergunta. Joanna até franziu um pouco a testa, voltando a cabeça para dentro para conferir o calendário que havia perto da porta antes de voltar a olhar para Cherry Você vinha ontem, mas preferiu sair com aquele pessoal metido a besta, lembra?

Eles não são metidos a besta! disse Cherry, fechando a cara. Joanna revirou os olhos de forma bem exagerada antes de falar.

Claro que são! Aquele maurcinho do queixo furado anda de terno pra tudo que é lado! Que criança de 11 anos gosta de andar de terno?

Bem, claramente não você. disse Cherry, olhando-a de cima a baixo. Joanna não gostou nem um pouco disso.

Claramente não eu. Então talvez seja melhor você procurar eles.

E já ia fechando a porta novamente, de cara fechada, quando Cherry esticou a mão para impedir. Estava de olhos fechados e parecia respirar fundo, os ombros murchando lentamente antes que ela pudesse falar.

Eu não quis dizer isso.

E…?

E eles são um pouco metidos a besta sim… disse Cherry, revirando os olhos, o que fez Joanna rir.

Vai, Paris, pode entrar… e abriu espaço para a ruiva entrar. Cherry não se fez de rogada, entrando e dando um esbarrão de leve no ombro de Joanna, que não tardou em entrar e correr para a cozinha, já gritando pela mãe para perguntar o que teriam de almoço.


Cherry se via parada diante da casa de Joanna, como já estivera tantas vezes no passado. Encolhida dentro do casaco, tremia um pouco de frio e tinha até mesmo um pouco de neve acumulada nos ombros, mas não tinha coragem de bater na porta nem sequer para pedir uma bebida quente. Seu queixo tremia um pouco. Talvez fosse melhor apenas voltar. Já estivera ali outras vezes desde que Joanna partiu, mas sempre dava as costas e ia embora antes de tomar qualquer atitude.

Sentia falta de Joanna. Era uma verdade que já tinha admitido para si. Sentia mais falta de Joanna do que jamais sentira falta de qualquer outra pessoa. Nem quando seu pai passava meses fora ou sua mãe lhe largava sozinha durante uma semana inteira para fazer compras em Paris, Cherry sentiu tanta falta de alguém como sentia de Joanna agora. Chegava a ser um pouco doloroso toda aquela saudade, que acabava sendo intensificada pela culpa.

Afinal, foi por sua culpa que Joanna tinha ido embora.

— O que você tá fazendo aqui?

A voz fez Cherry despertar com um pulo, olhando para trás para ver quem estava falando. Videl estava parada no meio da rua, pouco atrás de Cherry. Os cabelos agora loiro-platinados bem escondidos dentro de um gorro e do capuz felpudo jogado sobre sua cabeça. Usava tanta roupa que sua baixa estatura fazia ela parecer uma bolinha. Carregava em cada mão uma sacola de mercado e não parecia nem um pouco feliz em ver Cherry.

— Eu só…eu só vim…

Na verdade Cherry não sabia o que tinha ido fazer ali. Não sabia o que esperava encontrar estando ali. Encontrar Joanna escondida em algum lugar? Ou descobrir que ela já tinha voltado? Ela sabia que não. Se Joanna tivesse voltado, ela já saberia. A presença da garota era peculiar demais para não ser notada. Por fim encolheu os ombros, optando por uma resposta que não deixava de ser verdade, mas estava longe de ser totalmente verdadeira.

— Eu só queria saber notícias da Joanna.

— Por que? Até parece que você se importa. — respondeu Videl com selvageria, ainda parada no mesmo lugar.

— É claro que eu me importo!

— Ah é?! Então por que não disse que vocês estavam juntas naquela porcaria de domingo? — a voz de Videl saia mais agressiva a alta — Vocês populares tem um jeito meio estranho de mostrar que se importam com as pessoas.

— Você não entende… — disse Cherry sentindo-se cada vez menor.

— É, talvez eu não entenda. — disse Videl, balançando a cabeça negativamente, voltando a andar e passando Cherry, fazendo questão de esbarrar o ombro nela — O que eu entendo é que minha amiga se apaixonou por uma garota que sempre vai colocar a porcaria da popularidade acima de tudo.

O soluço escapou de seus lábios antes que ela tivesse chance de conter. Seus olhos ardiam e já sentia as primeiras lágrimas correndo pelo rosto, enquanto seu peito doía, como se as palavras de Videl fossem balas certeiras. Quando falou, sua voz estava fraca e chorosa, quase entalada na garganta.

— Isso não é justo.

— Justo?? — Videl parou repentinamente de andar, virando para poder olhar novamente para Cherry — Você quer saber o que não é justo, sua patricinha metida? Não é justo que eu fique DOIS MESES sem a minha amiga, só porque você acha que sua reputação vale mais do que…!

— Videl?

Uma voz vinda da porta interrompeu o sermão de Videl. Recortada contra a porta, agora aberta, estava Jules, a irmã mais nova de Joanna. Seus cabelos negros estavam ligeiramente maiores do que a última vez que Cherry tinha visto. Usava um moletom um tamanho maior do que ela, fazendo as mangas cobrirem suas mãos e olhava meio confusa para as duas.

— Ei gatinha. Foi mal ter gritado. — disse Videl, lançando um último olhar irritado para Cherry antes de adiantar-se — Trouxe aquela gororoba vegana que você gosta e um pouco de bolo de nozes pra sua mãe.

— Você é a melhor, Videl! — sorriu Jules enquanto pegava as sacolas, abrindo espaço para Videl entrar, mas logo olhando para Cherry parada ali, parecendo surpresa — Ei. Cherry! Você veio também?

A garota foi pega completamente de surpresa, como se esperasse que, pro algum milagre, Jules não fosse lhe ver ali. Notou que Videl parou um passo na metade e olhou por cima do ombro com aquela fúria contida.

— Não. Ela só tava perdida na rua, mas já tá indo embor…

— Cherry!

A voz da mãe de Joanna chegou aos seus ouvidos sem aviso. A mulher aparecia por trás de Videl, os cabelos escuros presos num coque, um avental bem preso ao corpo e as mãos segurando um pano de prato. Tinha anos que não a via. Apesar de algumas rugas e cabelos brancos ocasionais, continuava exatamente como Cherry se lembrava dela. O mesmo aspecto bravo mas com um sorriso caloroso e acolhedor. Era dois dedos mais baixa do que Jules, o que fazia dela a mais baixa ali, mas tinha um pouco daquela energia contagiante de Joanna.

— Por Deus, quanto tempo! Olha só você, como está tão grande e tão bonita!

— A senhora também está ótima, sra. Lambert. — sorriu Cherry, dando um sorriso meio sem jeito pelos elogios.

— Quer entrar? Estou tirando o jantar do forno agora mesmo, tem o suficiente para todas nós.

Cherry abriu a boca, mas acabou flagrando o olhar de Videl por trás da Sra. Lambert. Ela transparecia toda a irritação que sentia pela presença de Cherry ali. Talvez fosse melhor não abusar muito no momento.

— Não precisa, sra. Lambert. É melhor eu ir para casa…

— Ah, deixe de bobagem. Entre, entre, está fazendo um frio enorme e não é bom ficar do lado de fora com esse clima! Vamos, tome pelo menos um chocolate quente e peça um taxi para não ir andando para casa nesse frio. A previsão do tempo disse que vai nevar hoje de noite.

Antes mesmo que Cherry pudesse pensar numa forma de negar, a mulher já lhe segurava gentilmente pelo braço, lhe guiando para dentro da casa. Com um sorriso sem graça, a ruiva foi entrando, agradecendo várias vezes a hospitalidade dela. Jules tagarelava sobre algo enquanto recolhia o casaco de Cherry para poder ir guardar. Mas Videl seguia parada no corredor, mantendo aquele olhar duro e raivoso sobre Cherry. Quase como se considerasse a presença dela ali como uma afronta à Joanna, como se fosse uma espécie de sacrilégio.

No fundo Cherry entendia ela. E isso só fazia o peso da culpa voltar ao seu peito.


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