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Capítulo 3

Estava acostumada com o frio e a neve no inverno de Riverside, mas estar de volta à Sumerset era infinitamente pior. A fazenda era longe de tudo. A coisa mais próxima era a fazenda vizinha. Cidade mesmo? Quase uma hora de distância dirigindo até Riverside. E naquele dia em particular, a neve e o vento pareciam querer castigá-la.

Joanna fazia força para vencer a grossa camada de neve que se formava sobre os campos da fazenda Lambert. Usava grossas camadas de roupa e uma touca bem enfiada na cabeça, cobrindo suas orelhas. Ainda assim, quando finalmente conseguiu subir os degraus e entrar em casa, estava com a pontinha do nariz vermelho. Tremendo de levinho, livrou-se das luvas grossas e de uma camada de roupa, parando apenas para regular o aquecimento.

— Pai! Tô em casa! — falava enquanto se livrava das grossas botas que usava para andar na neve, soltando um “ah” prolongado de alívio. Sentia a ponta dos dedos doendo e até se permitiu sentar no sofá para massageá-los.

O resmungo ininteligível que veio de algum ponto da sala de estar era o sinal de que seu pai tinha ouvido. Provavelmente ele estava muito entretido com algum jogo de futebol pelo som que vinha da TV. Joanna passava pouco tempo ali embaixo. Quando não estava ajudando o pai com algum serviço da fazenda, estava trancada no próprio quarto, torcendo para o sinal da internet funcionar e ela poder assistir um pouco de Netflix. Era o que pretendia fazer, mas antes tinha que passar o relatório da manhã para ele. Levantou-se da cadeira com um gemido, caminhando até a sala de estar onde o homem estava largado, os cabelos loiros escondidos dentro de um gorro vermelho do Manchester United, os pés apoiados num banco e uma cerveja numa mão.

— As ovelhas já estão recolhidas no celeiro. A Downey não gostou muito disso, acho que ela se acostumou em ter o celeiro só pra ela, mas acho que um pouco de companhia vai fazer bom pra aquela vaca. — Srta. Downey era a vaca que ela e Jules criavam desde que era um pequeno bezerrinho. Depois que Jules virou vegetariana, proibiu os pais de sequer pensar em matá-la. Desde então, ela tinha virado quase que um animal de estimação delas — O aquecimento do galinheiro ainda tá fazendo barulho, mas funcionando, então nada de frango resfriado…sacou?

O homem resmungou alguma coisa com os olhos vidrados na TV, quase como se não tivesse ouvido Joanna. Mas ela sabia que seu pai estava prestando atenção em cada palavra. No fundo, ele só não falava muito. Com um suspiro demorado, Joanna tirou a cerveja da mão dele, dando um gole demorado.

— A mamãe disse que o senhor não podia tomar essas coisas.

— Vai me dedurar para ela? — perguntou ele, olhando-a meio de canto de olho. 

Joanna soltou um suspiro demorado e deu de ombros, devolvendo a garrafa para o homem, que apenas voltou a olhar para a TV. Ela era a adolescente ali, não era papel dela estar controlando ninguém!

— Mas ainda assim preciso ligar para ela. — falou enquanto dava meia volta para poder seguir na direção da escada — Preciso saber onde ela escondeu o resto dos seus remédios. O remédio pra coluna já acabou tem uns dois dias!

Mais resmungos vindos do seu pai, mas Joanna não se preocupou em responder. Subiu as escadas quase correndo, prontinha para se jogar em sua cama. Talvez descesse depois pra pegar um pouco de comida depois. Tinha certeza que ainda tinha sobrado um pouco do macarrão que tinha feito na noite anterior. Modéstia à parte, tinha ficado uma delícia! Entrou no quarto já se jogando na cama, arrastando até o outro lado para pegar o celular em cima da mesa de cabeceira. Se distraiu rindo de alguns memes que suas amigas mandavam no grupo, mas eventualmente lembrou o motivo de ter pego o telefone e discou o número de celular.


─────────


Era estranho estar ali, principalmente sem Joanna. Apesar da casa seguir um ritmo quase normal, com Jules, Videl e a Sra. Lambert conversando alegremente, parecia faltar algo. Vez ou outra Cherry se flagrou imaginando Joanna ali, sentada naquela mesa, com uma perna para cima, o jeito meio desleixado, rindo de forma escandalosa de alguma das piadas que Videl e Jules faziam. Era quase como se conseguisse ver ela ali daquela forma, o que, no fundo, era ainda mais dolorido.

O som de um celular tocando fez a ruiva despertar com um pulo. Um celular com uma capinha rosa coberta de adesivos berrantes vibrava sobre a mesa. O número não estava salvo na agenda, porque não havia nome. Dando um passo para o lado, Cherry observou as outras três, que demoraram um pouco para notar o celular tocando por conta do falatório.

— Ei, Cherry! Atende pra mim? — perguntou Jules, enquanto mostrava a travessa cheia de batatas gratinadas, justificando o pedido.

Fazendo uma careta de leve, a garota pegou o celular. Repetia mentalmente uma oração, torcendo para que não fosse aquele melhor amigo dela que tinha estragado a festa de Travis trocando socos como um troglodita.

— Residência dos Lambert, quem deseja?

Silêncio. Ninguém falou absolutamente nada. Mas não era como se não houvesse ninguém na linha. Ela conseguia claramente ouvir a respiração de alguém, o que fez com que Cherry franzisse um pouco a testa.

— Alô? — perguntou novamente, mas o silêncio se manteve — Eu estou escutando sua respiração, se isso for alguma pegadinha, não tem a menor graça. Eu vou desligar.

— Cherry?

O coração da garota deu um salto dolorido contra o peito. Foi tão forte que Cherry se sentiu por um instante como um desenho animado, onde o coração literalmente salta do peito. A batida foi tão forte que lhe deu uma pequena vertigem. Por sorte estava perto de uma parede e escorou-se ali. Notou que os olhos de todas estavam nela e tentou se recompor.

— Cherry? É você?

A voz de Joanna fez ela despertar. Ainda sentindo o coração acelerado e a boca repentinamente seca, Cherry passou a mão pela testa e pigarreou, limpando a garganta para voltar a falar.

— Ei…Joanna…

E o que mais poderia fala? Queria perguntar tanta coisa! Como ela estava? Quando ela voltava? Ela ainda lhe odiava? Tinha tanta coisa para perguntar para ela no momento e sua voz pareceu sumir. Aquilo nunca tinha lhe acontecido. Já tinha apresentado trabalhos, seminários, feiras científicas, diante até de algumas autoridades. Era a primeira vez que ela não conseguia falar nada.

— O que você tá fazendo aí?

— E-eu…eu… — por que era tão difícil falar? Tinha passado os últimos meses ansiando por aquele momento, querendo falar com Joanna, tentar colocar as coisas a limpo e, obviamente, matar a saudade que sentia dela — eu encontrei sua mãe na rua e ela me convidou para jantar.

Joanna soltou uma risada do outro lado da linha que fez com que Cherry sorrisse involuntariamente. Como sentia falta daquela risada que tinha se tornado seu sol particular. Como sentia falta de tudo naquela garota!

— É bem típico dela. Eu APOSTO que ela está fazendo carne enrolada com batata e arroz. 

Outra risada escapou por seus lábios principalmente para ver o que a Sra. Lambert colocava na mesa exatamente o que Joanna tinha dito. Mordeu o lábio inferior sentindo um calorzinho em seu peito. Conversando ali daquela forma com Joanna, foi inevitável não pensar no tempo que passaram juntas antes, bem…

Antes que ela estragasse tudo.

— Eu vou passar para ela, deve ter ligado para falar com ela, não é? — deu um riso meio sem jeito. Queria falar mais com Joanna, mas seu peito doía de mais no momento.

— Não, espera! — Joanna gritou do outro lado da linha, antes que Cherry afatasse o telefone do ouvido. Cherry sentiu a respiração acelerar um pouco, sentindo mais daquele pequeno calor. Então Joanna queria falar com ela? Ela não lhe odiava? Sentiu uma pequena esperança surgir em seu peito, inflando-se como um balão, que não tardou em ser estourado.

Você tem namorado a voz dentro da sua cabeça lhe lembrou aquilo. Mesmo que Joanna não lhe odiasse, nunca poderiam ficar juntas ainda assim.

— O que foi?

— Hmm…como você está?

Cherry voltou a sorrir. Ela queria saber como ela estava!

— Eu estou bem! Hmm…nada de novo. E você?

— Sabe como é, nada de novo também. A vida aqui é bem parada.

Cherry voltou a sorrir, mordendo o cantinho do lábio inferior. Ela quase esqueceu que estava na casa dos outros e falando no telefone dos outros! O lembrete disso foi o olhar nada feliz que notou de Videl em sua direção.

— Eu vou passar pra sua mãe, acho que ela quer falar com você. E você deve ter ligado para falar com ela.

— Ah!...sim, claro…verdade… — disse Joanna, como se de repente tivesse lembrado do porque tinha ligado para casa — Foi bom falar contigo, Paris…

Não se importava muito com o olhar ameaçador e cortante que Videl lhe lançava no momento. Havia uma felicidade crescente no peito de Cherry que ela não se permitia sentir há muito tempo. Murmurando uma despedida breve, entregou o celular para a Sra. Lambert, que começou a despejar várias perguntas assim que colocou o aparelho no ouvido. Sentou-se à mesa e só perdeu o sorriso ao notar que Videl se preparava para falar algo.

— Eu não sei porque você está se sentindo tão feliz. A culpa dela não estar aqui ainda é sua…

O lembrete foi como uma pedra de gelo escorregando lentamente por seu trato digestivo. Ela sabia que Joanna não estava ali por sua culpa. Não precisava de Videl lhe lembrando do pior erro que ela já tinha cometido em toda sua vida. Bem, na verdade o segundo pior erro…

— Então, você está namorando o gostoso do Truscott, não é? — perguntou Jules, sentando perto da mesa, alheia à animosidade entre Videl e Cherry, lembrando a ruiva sobre o pior erro de sua vida — Ele parece lindo. Quase saído de um conto de fadas! Me conta, como é namorar com ele?

— É…ótimo… — disse Cherry e ela notou que não tinha parecido nem um pouco sincera ao perceber o olhar de Jules — ele é carinhoso, companheiro, muito romântico e muito bonito também!

— Ai eu tenho uma inveja enorme de você! — disse Jules, apoiando o queixo entre as mãos. Cherry teve que prender a risada quando notou, pelo canto do olho, Videl fingindo que vomitava — Eu queria um namorado assim pra mim.

— E aquele seu amigo? — Joanna vivia falando mal dele. Cherry não precisava ser nenhuma adivinha para saber que haviam sentimentos envolvidos entre Jules e Sonny, mas não sabia como as coisas estavam depois da festa — Vocês não estão juntos?

— Quem? O Sonny? Blergh! — dessa vez foi a vez de Jules fingir que vomitava, mas sem tentar disfarçar — Eu não quero ver aquele cabeça de bagre nem pintado de ouro!

Cherry deu um riso curto, olhando de forma incrédula para Jules. Tinha conversado bastante com Joanna sobre os dois e sabia que eles viviam brigando, mas que em geral as brigas não eram o suficiente para manter eles afastados para sempre.

— Aliás, o Bellamy já te convidou para o baile? Algumas meninas da minha escola estavam comentando sobre isso!

Com um sorriso sem jeito, Cherry voltou a pensar no assunto que tanto lhe afligia. O convite para o baile. No seu âmago, queria que Bellamy fizesse um pedido discreto, nada chamativo, apenas os dois e mais ninguém. Mas ela sabia lá no fundo que não ia ser assim.

— Ainda não. Mas ele deve chamar em breve. — sorriu de forma meio forçada, enquanto fingia prestar atenção na Sra. Lambert, que andava e gesticulava pela sala toda enquanto dava instruções para Joanna. Jules suspirou sonhadora, debruçando-se sobre a mesa.

— Eu aposto que vai ser lindo!

— Oh…eu também seria capaz de apostar… — disse Videl de forma maldosa. Cherry apenas sorriu sem jeito. Sabia que não adiantava nutrir esperanças em ter um convite discreto.


─────────


A já inexistente esperança desapareceu ainda nos primeiros segundos daquela manhã escolar. Mal tinha colocado os pés nos corredores da escola em direção ao seu armário, quando se deparou com o local totalmente enfeitado com balões, fitas e adesivos dos mais chamativos possível. Algumas pessoas paravam para olhar. Outras até olhavam com expectativa enquanto Cherry se aproximava. Ela jurava que uma garota tinha até pego o celular para gravar. Sentindo as bochechas queimarem de vergonha, caminhou na direção do armário, com um medo sincero do que poderia haver dentro.

Nem bem tinha girado a chave para abrir, algo “explodiu” do lado de dentro, jogando confete e purpurina sobre ela, obrigando Cherry a fechar os olhos, a ponto de não ver o balão em formato de urso pipocar para fora, com várias fitinhas coloridas amarradas nele. Havia risos e gritinhos ao seu redor, mas também algumas risadas debochadas, que faziam a vergonha aumentar ainda mais. Depois de tossir e limpar o rosto de tanta purpurina, foi que Cherry pôde notar que o urso segurava uma grande faixa onde se lia “Quer ir ao baile comigo?” numa letra rebuscada, escrita num papel perfumado.

— Meu Deus do céu… — disse Cherry, claramente alarmada. Queria se livrar daquilo tudo, jogar numa lata de lixo e fingir que nunca aconteceu, mas mal tinha dado dois passos para trás, quando notou Bellamy parado atrás de si, de joelhos. Com um pequeno sobressalto, colocou a mão sobre o peito, olhando assombrada para o namorado.

— Ma Petit Cherry. Meu grande amor. Espero que esteja tudo do seu agrado!

Cherry deu um sorriso meio sem jeito, evitando o olhar de Bellamy. Algumas garotas se amontoavam por ali, aguardando em expectativa pela resposta. Engoliu em seco quando notou que três garotas em especial iam se aproximando dali conversando muito alto e de forma chamativa, mas ainda não pareciam ter notado eles ali.

— E então? Você me dá a honra de ser meu par no baile? — perguntou Bellamy, depois daquele silêncio profundo de Cherry.

— Bel… — claro que ela não iria negar! Estavam namorando, mas só queria, lá no fundo, que o namorado fosse menos chamativo — a gente pode falar sobre isso em outro lugar?

— Por que? Você não gostou dos balões? Ou foi do urso??

— Não! Não é nada disso! É que…

— Olha só, parece que o carnaval chegou mais cedo… — a voz zombeteira de Mildred fez Cherry fechar os olhos e gemer dolorosamente — olha só quanto confete!

Com um sorriso meio sem jeito, Cherry olhou na direção das três rascals, que agora começavam a prestar atenção no restante da decoração daquele convite espalhafatoso que Bellamy tinha feito.

— Gente, olha só isso, não é a coisa mais pequetucha e fofucha que vocês já viram? — perguntou Mildred, agarrando o ursinho que ainda estava preso por cordas, abraçando-o antes de mostrá-lo para Cherry, como se fosse possível ela não ter visto — É claro que você vai aceitar, não é, Cherrizinha??

Lá no fundo ela sabia que estava merecendo aquilo. Era incômodo receber aquele ódio vindo de alguma rascal, mas Cherry sabia lá no fundo que estava merecendo aquilo. Ainda assim, não deixava de sentir as bochechas queimando de vergonha, à medida que a multidão começava a se avolumar ao redor deles para ver o que estava acontecendo.

— Claaaaaaaaaaaro que ela vai aceitar, Mil…ela jamais negaria um pedido tão grandioso e espalhafatoso como esse. — disse Videl, com uma voz mole e melosa, piscando os olhos muito rapidamente na direção de Cherry e Bellamy — Afinal, toda a escola espera que o rei e a rainha do baile estejam lá e eles JAMAIS iriam querer decepcionar seus súditos, não é?

— Obviamente vocês não entendem nada sobre isso. — disse Bellamy, ajeitando a postura ao lado de Cherry — Como esperar que rascals entendam sobre corresponder expectativas? Ninguém espera nada de vocês além do pior!

— Bellamy…por favor… — pediu Cherry baixinho, segurando o braço do namorado. Videl deu uma risada baixa e irônica, tirando o ursinho das mãos de Mildred e olhando bem para ele por um instante, antes de falar.

— Não. O Ken Humano aí tem razão. Ninguém espera nada de nós além do pior, né? — e lançou um olhar significativo na direção de Cherry, que acabou se encolhendo um pouco, quase como se aquele olhar fosse uma faca afiada apontada em sua direção. Videl empurrou o ursinho com certa agressividade para a garota, dirigindo um sorriso doce e falso para ela — Não esqueça do seu ursinho e espero que vocês se divirtam muito sendo populares e fazendo coisas populares.

Sem esperar muito, a garota passou reto por eles, sendo seguida por Mildred que mostrou a língua para os dois. Bekai foi a última a passar. De todas era a que parecia menos hostil. Parecia pedir desculpas para Cherry com o olhar, mas tratou de correr atrás das outras duas que já estavam bem longe, cantando muito alto uma música do Aerosmith. Sentindo os olhos arderem com lágrimas que se formavam, Cherry ficou olhando para frente de forma dura. Sabia que as palavras de Videl não tinham sido à toa. Sabia que Joanna tinha sido suspensa justamente por ninguém esperar nada além do pior dela e das amigas. E aquilo era o lembrete de que ela podia ter feito algo para mudar aquilo e ficou calada.

— Cherry?

— Hm? — perguntou meio desconcertada, esquecendo momentaneamente que Bellamy estava ao seu lado.

— Então? Você aceita? — perguntou o garoto, parecendo meio apreensivo. Olhando ao redor, algumas pessoas já começavam a cochichar sobre eles, como se já estivessem teorizando uma possível crise no casal.

— Claro. Claro que aceito. Eu não iria com mais ninguém além de você, não é?

O garoto deu um sorriso luminoso e então beijou a namorada. Lá no fundo do seu coração, Cherry sabia que ele só estava demonstrando aquele carinho todo por ter tanta gente ao redor. E o fato de algumas meninas darem gritinhos animados com a cena que presenciavam parecia aumentar o ânimo de Bellamy em parecer um namorado amoroso. À Cherry restou apenas sorrir sem vontade.

— Vem, eu vou te deixar na sua sala, mon petit Cherri. — falou ainda com aquele sorriso de comercial de pasta de dente, enquanto oferecia o braço para ela. Querendo sumir dentro de um buraco para não ter que o olhar de mais ninguém sobre eles, Cherry apenas aceitou, seguindo com o namorado para longe dali.


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