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Capítulo 17

Os dias depois da festa foram estranhos. Depois que a luz voltou, não teve tempo de conversar com Joanna com tanta gente por perto. E no domingo pela manhã ela já tinha ido embora antes mesmo que os outros acordassem. Na escola nunca foi tão difícil encontrá-la. Ela parecia sempre estar perto de alguma Rascal ou com muita pressa para fazer algo. Cherry podia até estar delirando, mas tinha quase certeza de que Joanna estava lhe evitando.

Por isso ela estava tão ansiosa pela quarta-feira de tarde.

Havia também outra coisa ocupando sua mente naquele momento. No fim de semana haveria o primeiro jogo da temporada de Lacrosse. Justamente contra a escola de Doveport. Tinha duplicado o número de treinos, o que lhe deixava bastante ocupada, mas queria perguntar se Joanna iria lhe assistir jogar.

A terça de noite estava ocorrendo como sempre ocorria na sua casa desde que seu pai tinha voltado. O jantar seguia silencioso mesmo com a presença do homem, que em geral fazia suas refeições por trás do jornal enquanto sua mãe não desgrudava os olhos do celular. Raramente aquele silêncio era quebrado por algum comentário aleatório do seu pai sobre alguma notícia, mas que ele não se dava ao trabalho nem de esperar alguma resposta. Rapidamente passava a página, como se estivesse conversando sozinho.

Cherry mantinha os olhos meio vagos no prato, sem de fato se preocupar em comer. Não tinha fome. Vez ou outra desviava os olhos na direção do celular, como se esperasse ver alguma mensagem. Não apenas alguma mensagem. Vez ou outra até mesmo verificava sua conversa com Joanna, mas a última mensagem ainda era a dela, de duas horas atrás, perguntando se estava tudo bem, mas sem respostas da Lambert.

— Mas era só o que estava faltando mesmo…

A voz do seu pai novamente roubou sua atenção. De forma monótona e até mecânica, virou os olhos na direção do pai, esperando ele comentar brevemente alguma notícia aleatória como o preço do petróleo ou alguma votação do parlamento e então voltar ao silêncio habitual de sempre.

Peça reencena Romeu e Julieta com casal de mulheres. Onde esse mundo vai parar? Não basta essas pessoas estarem ocupando todos os lugares, agora querem até mesmo deturpar um clássico!

O coração de Cherry errou uma nota nesse instante. Num reflexo impensado, agarrou o celular e escondeu embaixo da mesa, como se temesse que ele estando ali, fosse revelar todos os seus segredos para seus pais. Sentiu-se repentinamente tensa e com uma enorme nuvem pesada circulando em sua cabeça, que só piorou quando sua mãe falou.

— Querem privilégios. Cobram respeito mas não sabem respeitar as famílias de bem, empurrando essas…coisas…como se fosse normal.

— Isso não é legal de se dizer… — murmurou Cherry, sentindo rapidamente os olhos dos pais se voltando para ela, como se fossem lasers de uma sniper. Sentindo o nervosismo só piorar, engoliu o bolo que se formava em sua garganta e tentou emendar — as pessoas hoje em dia costumam boicotar marcas que não são inclusivas. Não seria bom para os negócios.

— Ah, sim, sim, claro minha querida, eu jamais diria isso abertamente. — tratou de falar Patrick, voltando a sumir atrás do jornal — Sempre trataremos essas pessoas como se fossem normais.

— Mesmo que não sejam. — completou Melliope, com um arzinho maldoso, tratando de voltar sua atenção para o celular.

— Óbvio que não. Deveriam ter ao menos respeito e não querer normalizar esse tipo de coisa. Quer ser uma aberração? Seja, mas ao menos seja discreto.

Cherry já não sabia mais o que dizer. Sua garganta ia embolando cada vez mais a ponto de ficar até difícil de respirar. E só quando notou que começava a sufocar um pouco foi que notou as lágrimas no canto de seus olhos. Tratando de enxugar rápido, agarrou o celular com ainda mais força e levantou-se da mesa, murmurando uma desculpa qualquer sobre precisar estudar e sair rapidamente do local. Seu coração batia de forma tão dolorosa no peito e quando estava longe o suficiente o bolo que sufocava sua garganta se desmanchou em lágrimas. Teria chorado de forma até escandalosa se não tivesse que ser discreta para não chamar a atenção dos seus pais. Ao chegar no quarto, fechou a porta e encostou-se nela, escorregando até o chão. Sem muito pensar, tirou o celular do bolso e enviou uma mensagem.


De: Cherry Depardieu

Para: Joanna Lambert


Eu sinto sua falta


Arrependeu-se no momento em que enviou. O que fez ela chorar ainda mais. Precisava de Joanna. E mais do que nunca sabia que só conversar com ela lhe acalmaria. Mas também sabia que jamais poderia ter Joanna. Aquilo doía e a única coisa que impedia Cherry de tomar a decisão de nunca mais procurar a Lambert era um certo egoísmo em seu peito que não queria perdê-la, mesmo que não fosse justo para nenhuma das duas.


─────────


A terça-feira estava ligeiramente monótona para Joanna. E para alguém que odiava a monotonia, ela estava definitivamente entregue à ela. Não queria procurar nada para fazer e muito menos tinha forças para botar um croped e reagir. Não, bem longe disso.

Sua cabeça estava focada no dia seguinte.

Era a primeira vez que encontraria Cherry desde a festa na casa de Travis e ainda não sabia como agir diante dela. Tinha saído bem cedo no domingo de manhã, praticamente arrastado as rascals, Jules e Sonny - por mais que a vontade de deixar o garoto lá fosse maior - para fora sem falar com ninguém. Desde então vinha evitando dar chances de ser encontrada sozinha para não ter que lidar com os próprios sentimentos.

— Ei…você vai ficar muito tempo nessa?

Videl tinha passado ali para lhe ver. Era a única que sabia do seu segredo e, além de se sentir mal por não contar para Fani e para Mildred, Joanna não estava muito a fim de tentar parecer que estava tudo bem. Com um suspiro demorado, ajeitou-se na poltrona onde estava praticamente deitada, estalando o pescoço e a coluna doloridos pela posição totalmente estranha na qual a garota estava, usando o movimento para ganhar tempo.

— Sei lá. Não anda sendo uma semana muito animada no lar dos Lambert. — e olhou discretamente na direção das escadas — A Jules também não anda sendo a senhorita cintilante de sempre.

— Ainda brigada com o namoradinho? — perguntou Videl enquanto brincava com umas tampinhas de cerveja abertas.

— Uhum. E dessa vez parece que foi sério. — Joanna recostou-se um pouco mais na poltrona, deixando o corpo afundar um tantinho — Em geral à essa hora eles já tão de boa, dessa vez ela ainda nem desbloqueou ele no telefone. Você viu a cara dela quando eu o deixei em casa no domingo, não viu?

— Ô se vi. Por um instante achei que ela fosse pedir pra você passar com a caminhonete em cima dele.

— Teria sido uma boa ideia. — aquilo arrancou uma pequena risada de Joanna, mas não o suficiente para tirar aquele ar pesado dela. Videl obviamente notou aquilo, porque se aproximou lentamente, sentando no sofá ao lado da poltrona onde ela estava.

— Mas e quanto a você, Jô? — perguntou num tom baixo, tanto para demonstrar preocupação quanto para não terem risco de serem ouvidas — Você vai falar com a Cherry?

— Sobre o que? Sobre como todos as amiguinhas dela ficam cheias de risinhos querendo juntar o casalzinho perfeito rei do baile? — bufou irritada enquanto afundava ainda mais na cadeira, parecendo querer se enterrar ali dentro — O que eu posso falar? Que eu fiquei chateada por ela ir pro armário com o Mister Simpatia Sorriso Perfeito? Ou que esse lance de me esconder tá começando a ficar chato, ainda mais quando ficam empurrando ela para outro?

— Bem…sim? — Videl encolheu um pouco os ombros enquanto observava a amiga que além de ir sumindo dentro da poltrona, ia ficando mais ranzinza à medida que tocava no assunto.

— E o que ela vai fazer pra resolver isso? — Joanna sabia que Cherry ainda não estava pronta. Revelar para todo mundo no colégio que está saindo com uma garota? E que essa garota é uma rascal? Nem tão vedo.

— Mas e o que você vai fazer para resolver isso? — perguntou Videl, erguendo um pouco as sobrancelhas — Ou seu plano é continuar fugindo da Cherry para sempre?

Joanna bufou baixinho, mas não respondeu logo de cara. Olhou fixamente para a TV desligada à sua frente, encarando a própria imagem na tela preta e plana à sua frente. Pensava nas horas antes da falta de luz, quando encontrou Cherry no meio da chuva, fugindo da festa por estar com ciúmes dela com Amanda. Será que naquele momento ela sentiu o mesmo que Joanna estava sentindo agora? Com tanta coisa rodando sua mente, Joanna abriu a boca para responder Videl, quando o alerta de mensagem no celular apitou quebrando o silêncio.

Puxou o celular e sentiu o coração errar uma nota ao ver que era Cherry. Também sentia saudades dela e por mais chateada que estivesse com a situação, ainda assim não apagava o que sentia por ela. Por um instante criou em sua cabeça o cenário onde pagava a chave da caminhonete e dirigia a cidade toda até onde Cherry morava, apenas para falar com ela. Mas com uma sacudidela de cabeça, fez aquele cenário sumir como tinta dissolvendo na água até diluir por completo. Jogou o celular de lado e levantou de onde estava sentada.

— Eu preciso dormir, Vix. A gente se vê amanhã na escola?

Videl olhou longamente para Joanna e ela sabia exatamente o que a amiga estava pensando. Quase podia ouvir ela verbalizando suas preocupações, mas por fim ela apenas concordou, levantando do sofá. Deu um abraço rapidinho em Joanna que a acompanhou até a saída, onde Videl pegou sua bicicleta e foi subindo a rua até sumir ao virar a esquina. Joanna ficou parada na porta, olhando para onde a amiga tinha partido, tentando não pensar tanto naquela mensagem não respondida em seu celular, principalmente quando teve que voltar para o lado de dentro da casa e fingir que de fato ia tentar dormir.


─────────


A quarta-feira amanheceu com o tempo bem fechado e frio. A medida que o outono ia avançando, o vento ia ficando mais forte e era possível notar o ar alaranjado que a cidade ganhava enquanto as folhas iam amarelando e caindo. Aos poucos as calçadas iam ficando cheias de folhas e era comum ver seus moradores usando ciscadores e vassouras para limpar a sujeira deixada pelas árvores que iam ficando com seus galhos de fora.

Cherry passou o dia inteiro com uma ansiedade latente gritando em seu peito. Joanna não tinha lhe respondido, o que só reforçava o pensamento de que havia algo errado e mais do que nunca ansiava encontrar com ela. Passou o dia inteiro em silêncio, respondendo de forma evasiva sempre que seus amigos perguntavam se havia algo de errado e, quando o sinal tocou informando o final das aulas, despediu-se rapidamente deles e correu o mais rápido possível até o local marcado.

Chegou ao depósito da escola meia hora antes do combinado. Não sabia se Joanna estava lhe evitando mesmo, mas se estivesse, não poderia fazê-lo para sempre. Afinal, ainda eram dupla no trabalho de literatura. Andando de um lado para o outro, ficou olhando para o relógio ansiosamente, fingindo adiantar o trabalho, mas no fundo apenas esperando ela chegar.

Quinze minutos depois do horário marcado, a porta do depósito se abriu. Era Joanna. Essa semana seus cabelos estavam num rosa vibrante, era impossível não reconhecê-la.

— Foi mal o atraso, perdi a hora conversando com as meninas no pátio — disse Joanna enquanto ia entrando. Cherry murmurou um “não tem problema” enquanto notava ela se aproximar — Então, o que falta pra hoje?

— Ahm...ficamos de costurar a parte da saia hoje… — Cherry olhava meio incerta para Joanna. Quase como se quisesse encontrar algum sinal de que as coisas estavam bem ou não — Não nos falamos desde...sabe...sábado.

— Tudo isso? Sério? — Joanna ia andando pela sala, fingindo prestar muita atenção nos materiais espalhados por ali. Incomodada com aquilo, Cherry foi até ela, segurando seu braço de leve.

— Ei. Tá tudo bem?

— Uhum. Tudo ótimo. — disse Joanna afastando o braço da mão de Cherry, dando um sorriso forçado na direção dela antes de afastar-se — Seria bom começarmos a pensar no vestido da outra Iseult lá. A das mãos pálidas.

— Mãos brancas. — corrigiu Cherry. Joanna fez um gesto largo com a mão, antes de seguir andando — Por que você está mentindo pra mim?

— Eu não estou mentindo! — disse Joanna, a voz desafinando uma oitava. Cherry cruzou os braços e olhou para ela brava, o que fez a Lambert revirar os olhos e murmurar um “tá” bastante prolongado antes de voltar a falar — Eu tô chateada, ok?

— Com o que? — perguntou Cherry, descruzando os braços.

— Não é exatamente agradável ver a garota que você gosta indo para um armário dar uns amassos com o cara por quem ela tem um crush. — foi a vez de Joanna cruzar os braços e assumir um ar amuado.

— Não é bem assim… — disse Cherry, mas Joanna tratou de interromper.

— Não? Você sabe que é, Paris. Bellamy é o Sr. Perfeição. Ele é bonito, inteligente, tem aquele ar de superioridade mas paga de bonzinho, tentando ser...sei lá, um Clark Kent sem superpoderes. Você pode apresentar ele para os seus pais, levar para o almoço de domingo, sair com seus amigos. Eu sei que ele é o cara que você sempre sonhou. Eu? Vou ser sempre a garota rascal que você dá uns pegas no sigilo.

— Não é assim! Você sabe que você é mais do que isso pra mim! — aquilo atingiu Cherry num ponto bem sensível, na verdade. Sentiu a raiva subir junto com algumas lágrimas — Você sabe que eu gosto de você e prometeu esperar! Você disse que entendia!

— E eu entendo! — retrucou Joanna, olhando duro para ela — Mas isso não significa que eu goste.

O silêncio pairou entre as duas por um bom tempo. Era pesado e incômodo, quase como se fosse sólido e estivesse esmagando elas. Cherry sentia até um pouco de claustrofobia, como se estivesse sendo pressionada por duas paredes gigantes. Deu um passo para trás, secou as lágrimas com as costas das mãos antes de falar.

— Acho que a gente precisa de tempo. — disse Cherry, passando a mão pelo rosto.

— A gente ainda tem até a primavera para terminar isso. — disse Joanna, com um gesto largo, mas Cherry balançou a cabeça negativamente.

— Não, eu digo nós. — Cherry virou de costas para secar mais lágrimas, começando a reunir o material.

Novamente o silêncio. Incômodo, pesado, como se as paredes estivessem fechando sobre elas. Entre um fungado e outro, Cherry ia juntando suas coisas, até que Joanna pareceu sair de uma espécie de transe causado pelas palavras de Cherry.

— Você está falando sério?

— Estou. — disse Cherry, virando para ela com os olhos vermelhos — Já é a segunda vez que a gente briga por conta desse assunto e eu não quero ter que ficar brigando o tempo todo.

— Nós não estamos brigando. — ponderou Joanna — Estamos discutindo.

— Dá no mesmo! — disse Cherry, exasperada — Se toda vez que algo assim acontecer a gente começar a brigar, é melhor a gente terminar logo.

— Terminar o que?? Nós não temos nada! — foi a vez de Joanna se alterar um pouco, jogando as mãos para o alto.

— ÓTIMO! Assim é mais fácil, se não tem nada para terminar! — as lágrimas já desciam pelo rosto de Cherry enquanto ela sentia a voz afinar e ficar mais embolada.

— Claro, obviamente fica mais fácil para você. — disse Joanna com um arzinho irônico. Passou as mãos pelos cantos dos olhos, obviamente secando algumas lágrimas antes de prosseguir — Você só estava querendo uma desculpa, não é?

— Uma desculpa? — aquela pergunta pegou Cherry de surpresa. Sua voz saiu tão baixa que até pensou que Joanna não teria lhe escutado.

— É, uma desculpa. Você curtiu o momento, teve uma experiência nova, mas não é o que você queria e não sabia como me dar um fora, então é uma ótima desculp…

Não soube de onde aquilo veio, mas antes que pudesse controlar, sua mão foi de encontro ao rosto de Joanna num tapa tão forte que ecoou pelo local e deixou sua palma da mão ardida. Seus olhos queimavam de raiva e tristeza e seu estômago borbulhava de frustração no momento. Talvez se tivesse pensado duas vezes não tivesse feito, mas lá dentro de si algo dizia que Joanna tinha merecido aquilo.

— Mas que porra…!

— Você não…você não ouse… — mal conseguia raciocinar sobre o que queria falar. Sua cabeça funcionava a mil por hora, seu coração acelerado batendo contra seus tímpanos não ajudava a clarear os pensamentos e a vontade de chorar parecia vir do fundo do seu estômago, mas ela segurava firmemente — Só…sai daqui! Sai da minha frente! Eu não quero te ver!

Com um olhar mesclado entre a mágoa, a tristeza e o choque, Joanna abaixou-se para pegar a mochila e foi saindo dali, a mão ainda tocando o rosto onde ela tinha dado o tapa. Quando a porta fechou, Cherry desabou no choro, sem se preocupar se estava sendo barulhenta ou não. A única coisa em toda sua vida não planejada e que fazia parte dela, apenas dela e não do sonho de alguém, tinha acabado de ruir e ela não sabia o que fazer de agora em diante. Em sua mente resistia aquela pequena ansiedade que sentia em perguntar se Joanna iria lhe assistir no fim de semana. Nem chegou a fazer a pergunta e agora nunca teria aquela resposta.







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