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Capítulo 18

O céu ainda estava escuro e Joanna já estava de pé. Colocando um moletom com capuz e um outro casaco por cima, já que começava a esfriar bastante, a garota ficou andando de um lado para o outro do próprio quarto, tentando decidir o que fazer. Lançou um breve olhar na direção do relógio em cima da mesa de cabeceira e viu que já eram mais de 3h da manhã. Por fim, rabiscou um bilhete bem rápido para Jules não lhe esperar, deixou grudado na geladeira e saiu de casa.

Decidiu não usar a caminhonete. Era barulhenta demais para o que queria fazer, ainda mais naquele momento em que a cidade inteira estava dormindo e nada, exatamente nada, fazia barulho.

Eram as primeiras horas do sábado e, até onde Joanna sabia, tinha pouco tempo. Era o dia do jogo contra a equipe de Doveport e sabia que Cherry deveria se preparar cedo para o jogo. Sabia que a conversa não seria rápida, então tinha que aproveitar todo o tempo possível.

Mesmo o índice de violência do local sendo extremamente baixo, não deixou de sentir um pequeno calafrio enquanto atravessava a cidade tão vazia a ponto de parecer uma cidade fantasma. Vez ou outra se sobressaltou com o latido de um cachorro ou o som meio distante de um carro acelerando, mas focou-se em seu trajeto. Já passava das quatro da manhã quando chegou até seu destino.

A casa de Cherry, assim como toda cidade, estava completamente no escuro e silenciosa. Obviamente todos já estavam dormindo. Agora que estava ali, parada diante do local, a ideia de ter ido ali no meio da madrugada lhe pareceu imensamente idiota. Ainda assim, tinha andado muito para simplesmente desistir e teria que andar ainda mais para voltar para casa de toda forma, então o melhor à se fazer no momento era arriscar.

Usando de sua altura e das habilidades que anos e anos de rascal lhe providenciaram, escalou uma árvore perto de uma das janelas, espiando para o lado de dentro. Dava para ver muito pouco do quarto, mas decididamente não era o de Cherry. Com cuidado, quase grudada na parede e com um medo incrível de cair, foi dando a volta na casa, tentando ser o mais silenciosa possível, olhando de janela em janela até encontrar o quarto que estava procurando.

Para sua sorte, a janela estava destrancada. Com a perícia de um gato, escorregou para dentro com cuidado, fechando a janela e indo até a cama de Cherry, sentando-se com cuidado ao seu lado e pondo uma mão delicadamente em seu ombro.

— Ei, Paris. Acorda.

Sabia o que iria acontecer e, quando uma Cherry completamente grogue de sono virou-se em sua direção, tratou de tapar a boca da garota o mais rapidamente possível, para impedir o grito. Com os olhos arregalados, levou o indicador aos lábios num pedido mudo de silêncio, olhando apavorada na direção da porta. Sem movimento nos outros quartos. Aos poucos foi afastando a mão da boca de Cherry, que continuava a lhe olhar em choque.

O que você acha que está fazendo aqui?? — perguntou Cherry, tentando manter a voz baixa, mas sem conseguir esconder aquela pequena exasperação em sua voz.

— Eu vim te ver, oras… — Joanna encolheu um pouco os ombros enquanto se afastava um pouco para o lado, sentando quase na beira da cama de Cherry — e pedir desculpas.

— E você não podia fazer isso de manhã, como qualquer pessoa normal??

— Eu sei! — disse Joanna, evitando olhar para Cherry — Eu pensei nisso, mas eu já estava aqui na frente e eu andei tanto…

— Você veio andando? — o tom de voz de Cherry abrandou um pouco com a surpresa — O que aconteceu com o Troço?

— Não chama ela assim… — por que todo mundo tinha mania de chamar sua caminhonete de “Troço”? — Mas ela é barulhenta demais. Ia acordar a cidade toda antes que eu pudesse chegar aqui.

O silêncio que recaiu sobre elas no momento deixava bastante claro que o motor da velha caminhonete iria mesmo fazer um grande estardalhaço andando pela cidade à noite. Mais do que isso, o silêncio tornou-se pesado e estranho para elas. Provavelmente na cabeça de ambas ia repassando a última conversa que tiveram e enquanto revisava as próprias palavras, Joanna pigarreou de leve antes de tomar a palavra para si.

— Eu fui bem cuzona, né?

— Foi. — disse Cherry sem rodeios, ajeitando-se na cama. Talvez fosse a imagem que tivesse nos filmes, mas imaginava Cherry dormindo com aquelas roupas todas cheias de lacinhos e babados, mas ela usava um pijama estilo moletom, com estampa meio descascada da Torre Eifel. Nada tão glamuroso quanto Joanna esperava.

— Você não precisava concordar. — Joanna tentou colocar um pouco de humor nas palavras, mas ao receber o olhar duro de Cherry tratou de retomar o ar mais sério — Ok. Eu sei que fui uma grande cuzona e disse um monte de coisas idiotas e que eu provavelmente não deveria ter dito. Eu sinto muito. De verdade. No fundo eu acho que mereci aquele tapa.

— É. Você mereceu. — disse Cherry, ainda mantendo aquele olhar duro que, pouco a pouco, foi amolecendo um pouco mais — Eu gosto de você, Lambert. Você é uma experiência nova, mas não é por ser a primeira garota com quem eu fiquei ou…ou por ser alguém tão diferente de mim… — os olhos da ruiva brilhavam, denunciando que haviam lágrimas se formando — Você é uma experiência nova porque é a primeira pessoa de quem eu gosto de verdade.

Ouvir aquilo encheu o peito de Joanna de um calorzinho gostoso e, ao mesmo tempo, um remorso gigantesco. Ouvir aquilo parecia dar um peso ainda maior para as palavras que ela tinha dito à Cherry na quarta-feira e tornava elas ainda piores.

— Eu sei. É só que é tão frustrante! Eu também nunca gostei de alguém como eu gosto de você. Eu nunca tive ciúmes de ninguém a ponto de me sentir como eu me senti na festa do Travis! — tentava manter os olhos firmes nos de Cherry para demonstrar a veracidade de suas palavras, mas a vergonha era tanta que às vezes era até difícil — Nada justifica a forma como eu agi, mas no fundo isso também é uma experiência nova para mim.

Novamente o silêncio se instaurou no quarto por um longo período. Ao longe ouviram o ronco profundo de alguém seguido de um pigarro e novamente silêncio. Inquieta, Joanna se movimentou na cama, querendo perguntar o que se passava na cabeça de Cherry naquele momento, mas sem querer pressioná-la.

— O que a gente faz agora então? — perguntou Cherry, ajeitando a postura para que ficasse de frente para Joanna.

— Eu sei que eu fui uma cuzona, já estabelecemos isso, mas… — e nesse momento ajeitou a postura também, puxando as pernas para cima da cama, de modo que pudesse ficar de frente para Cherry — eu vim até aqui de madrugada, pronta para quebrar a cara e ouvir um não, mas eu vim pedir uma nova chance. Será que a gente pode tentar de novo?

Com cuidado, deslizou as mãos até as de Cherry, segurando-as com cuidado entre as suas. Achou que talvez fosse um bom sinal ela não ter puxado as mãos, mas ainda assim seu silêncio lhe deixou angustiada. Na mente da Lambert passaram-se minutos enquanto esperava alguma palavra vinda de Cherry, mas por mais que quisesse muito que ela respondesse logo, manteve-se em silêncio.

— Eu preciso pensar. — disse Cherry por fim — Eu tenho um jogo muito importante daqui há pouco e eu não quero perder o foco. Mas ei… — talvez algo no semblante de Joanna tivesse denunciado o quanto ela tinha ficado triste com aquela resposta, já que Cherry tratou de estender a mão e tocar seu rosto com cuidado — eu não estou dizendo “não”. Só me deixa passar por esse jogo, ok? Eu juro que quando terminar, nós vamos conversar, ok?

Não era bem o que Joanna queria ouvir, mas estava longe de ser uma derrota. Com um suspiro demorado, a Lambert inclinou o corpo um pouco para trás, parecendo querer estalar um músculo nas costas, antes de soltar um “táaaa” bastante prolongado e baixinho, antes de retomar sua postura anterior.

— Depois do jogo então, certo? Eu estarei lá.

— Você vai me ver jogar? — perguntou Cherry, sem esconder um pequeno sorriso.

— Eu não perderia isso por nada no mundo. — mesmo não sendo uma entusiasta de esportes, Joanna estava falando muito sério. Não estaria indo pelo Lacrose e sim por Cherry.

O clima ao redor delas pareceu se desmanchar, como um enorme castelo sendo varrido pelo vento. Aquele ar pesado e triste que tinha se estabelecido depois da festa e piorado após a briga no depósito, parecia aos poucos se dispersar, dando lugar à uma atmosfera mais branda. Joanna sentia que havia até um certo clima propício, como se tudo pedisse para beijá-la. Cherry pareceu notar isso também, porque acabou pigarreando e afastando-se um pouco.

— Eu preciso dormir um pouco mais. Quero estar inteira para o jogo de amanhã.

— Ah. AH! Claro. Sim. Claro. — dizia Joanna, meio atrapalhada, enquanto ia se levantando quase que aos tropeços da cama, tentando não fazer barulho — Foi mal, eu meio que perdi a hora.

Cherry deu um risinho curto, mantendo os olhos sobre a Lambert enquanto ela seguindo na direção da janela Com todo cuidado, Joanna foi abrindo a janela e já estava com uma perna passada pelo lado de fora quando Cherry chamou.

— Joanna.

Parada no parapeiro, meio sentada com uma perna de cada lado, Joanna voltou a olhar para Cherry, com um leve “hm?” escapando de seu nariz, enquanto voltava a olhar para ela, com um ar curioso. Por um mínimo segundo, ela pensou que Cherry estava prestes à pedir para que ela dormisse ali com ela aquela noite, mas ela acabou mudando de ideia no meio do caminho.

— Te vejo amanhã na escola. — foi o que saiu dos lábios da Depardieu.

Tentando esconder uma pequena frustração, Joanna deu um riso baixinho e murmurou um “até”. Ainda assim, ficou alguns segundos sentada ali, encarando Cherry antes de dar as costas e sair, fechando a janela com cuidado. O mesmo cuidado empreendido em sair dali, mesmo que tivesse um pouco de pressa. A viagem seria longa.


─────────


Os primeiros raios de sol nem tinham rompido a escuridão ainda e Cherry já estava de pé. A verdade é que pouco dormiu depois que Joanna apareceu em seu quarto. Tinha tanta coisa rodando em sua cabeça e a ansiedade daquela conversa que teriam lhe impediam de ter uma noite completa de sono.

Era pouco mais de seis da manhã quando ela se levantou da cama, entendendo que não conseguiria mais dormir. Depois de arrumar seu material esportivo com cuidado numa bolsa, colocou sua legging cinza e um top de corrida e saiu para sua corrida matinal. Era ótimo para colocar a cabeça no lugar e aquecer seu corpo para a partida.

E tinha muito o que colocar no lugar no momento. Até por isso estendeu sua corrida mais do que o previsto, a ponto de ser quase sete horas quando ela voltou para casa. Tinha acabado de entrar e já tirava os fones de ouvido quando alguém lhe chamou.

Bonjour ma petite Cherry… — era a forma habitual de seu pai falar com ela carinhosamente. Cherry chegou até a sorrir enquanto caminhava na direção do escritório, de onde a voz dele tinha vindo.

Bonjour, papa… — respondeu Cherry enquanto avistava Patrick Depardieu com o jornal meio abaixado, sorrindo de forma paternal para ela.

— Então, é hoje o grande dia, hm? — perguntou enquanto apontava para a cadeira diante de si. Cherry até pensou em argumentar sobre estar suada, mas acabou apenas aceitando a oferta do pai, confirmando com um movimento de cabeça — E está preparada?

— Como sempre, papa. — falou com a confiança de quem vinha derrotando Doveport há anos. Patrick deu um sorriso orgulhoso e tornou a baixar o jornal.

— Você sabe que um currículo assim tão vitorioso com certeza vai te garantir oportunidade nas melhores faculdades do mundo, não é? — Cherry apenas meneou a cabeça positivamente. Já tinham tido aquela conversa tantas vezes que nem tinha dedos suficiente nas mãos e nos pés para contar — Não que você precise disso, seu sucesso está garantido desde que você nasceu, mas todo Depardieu é assim. Gosta de tomar o destino nas próprias mãos.

Cherry sorri, mas sentiu algo incômodo e ácido em seu estômago. Odiava como seu pai tinha o condão de deixar claro que seu sucesso estava condicionado ao fato dela ser uma Depardieu e não pelo seu próprio esforço. Queria rebater e dizer que tinha feito o suficiente para não depender do nome ou do dinheiro da família para conseguir o que queria, mas não achou pertinente ao momento. Seu pai, no entando, tomou seu silêncio como um convite para prosseguir.

— Certamente irá para uma das melhores universidades do mundo. Talvez para HEC, como eu. Sim, certamente você dará muito orgulho para nossa família, ma petite Cherry.

“E com certeza nos dará descendentes perfeitos”.

O bolo ácido em seu estômago pareceu esfriar subitamente, tornando-se em puro gelo em menos de um segundo. Sentiu suas entranhas congelarem a ponto de doer e as mãos apertarem com força o tecido da calça. Engoliu em seco e tentou sorrir, mas descobriu que seu prórpio rosto parecia congelado e tudo o que conseguiu foi um esgar tetânico.

— Acho que sou nova de mais para pensar nisso, papa. Prefiro me concentrar por enquanto em meus estudos e em terminar a escola.

— Ah sim! Evidente, evidente! — disse Patrick com um gesto largo, tornando a erguer o jornal, mas apenas para sacudí-lo e dobrá-lo cuidadosamente, repousando-o sobre a mesa — Não estou dizendo que você deve pensar em casar e ter filhos agora, mas…

Cherry não encorajou seu pai a prosseguir depois daquele “mas…”. Algo dentro dela sabia o que viria depois daquilo. E, mais uma vez, Patrick tomou seu silêncio como incentivo para continuar à falar.

— Obviamente é preciso escolher bem a pessoa com quem você dividirá o futuro. Particularmente gosto muito do garoto Truscott. Ele é inteligente, caridoso, vem de uma família muito influente, tem ótimas notas e certamente também irá para uma excelente faculdade. Com certeza ele seria um par ideal.

O estômago de Cherry pareceu se encher mais e mais com aquele líquido gelado que parecia subir e esquentar em seus canais lacrimais. Cherry foi obrigada a fingir limpar o suor do rosto para secar as lágrimas que ameaçavam cair, enquanto seu pai dava o golpe de misericórdia.

— Obviamente seria uma enorme vergonha para um Depardieu se relacionar com alguém desleixado, de família sem prestígio e que não se preocupa com o futuro.

Obviamente na cabeça do seu pai ele nem considerava a possibilidade dessa pessoa ser uma garota, mas tudo o que ele falava, de alguma forma, descrevia Joanna. Encrenqueira que não tinha todo o futuro planejado assim como Cherry, que se preocupava mais em viver o hoje do que com o que viria amanhã e que tinha uma família bastante humilde. Seu pai tinha deixado, mais claro do que nunca, que escolher Joanna seria o mesmo que desonrar a família, mesmo sem saber do relacionamento delas.

— E-eu preciso me arrumar para ir ao colégio, papa. — Cherry levantou-se o mais lentamente possível da cadeira, por mais que sua vontade fosse a de sair correndo. Suas pernas tremiam um pouco e ela tratou de caminhar o mais depressa possível para a saída do escritório.

Oui, oui, eu e sua mãe iremos assistir o jogo, então é melhor ir se arrumar.

Com um último sorriso em forma de esgar, Cherry saiu do escritório, esperando estar longe o suficiente para sair correndo para o andar de cima, já sem forças para conter as lágrimas que escorriam em seu rosto. Era injusto que aos dezesseis anos tivesse que fazer uma escolha tão difícil.


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Pouco a pouco o estacionamento do colégio ia se enchendo. Era a primeira partida do torneio regional de lacrose e justamente contra o maior rival da escola de Riverside. Obviamente a cidade ia se movimentando para acompanhar a partida. Como prometido, Joanna era uma das pessoas presentes e tinha arrastado todas as rascals junto para torcerem por Cherry, mesmo que elas não soubessem daquilo.

— Desde… — as frases de Mildred iam sendo constantemente interrompidas por bocejos — quando você acompanha o torneio de lacrose, Lambert?

— É sempre hora de começar a participar dos eventos escolares, não? — perguntou Joanna enquanto encaixava sua velha caminhonete entre dois utilitários brilhantes de tão novos — Oras, é nosso penúltimo ano! A gente tem que aproveitar esse espirito escolar, certo?

— Quem é você e onde escondeu Joanna Lambert? — perguntou Bekai em tom de ironia enquanto descia da caminhonete.

— Vocês são umas chatas, sabiam? — disse Joanna, arrancando uma risada de todas — Vão na frente, eu preciso ir no banheiro.

— Vê se não encontra seu namoradinho secreto no caminho e some! — alertou Mildred, arrancando risadas de todas, enquanto se apoiava em Videl, andando como uma bêbada.

Apesar do riso, Joanna tinha uma pequena esperança de encontrar Cherry antes do jogo mesmo. Queria desejar boa sorte e deixar claro para ela que estava ali de fato, como tinha prometido. Torcendo as mãos nervosamente, entrou no prédio do colégio que estava vazio por ser sábado. Mal dobrou o primeiro corredor quando sentiu um puxão violento lhe jogando contra a parede.

Por um instante achou que estava sendo atacada por algum animal selvagem que bufava em cima dela, mas aos poucos reconheceu os músculos de um dos trogloditas da equipe de rugby. Um olhar pouco mais atento e reconheceu de quem se tratava.

— Mas que porra, Robert! — exclamou Joanna tentando se afastar, mas o garoto segurava seu braço com força e impedia que ela se movimentasse muito. Robert tinha um ar enfurecido, mas abria um sorriso maldoso em seu semblante.

— E eu achando que a Cherry ia me trocar pelo mauricinho engomado do Truscott. Se ela está com uma rascal, torna tudo muito mais fácil para mim.

O coração de Joanna errou uma nota e ela sentiu como se todo o fluxo sanguíneo do seu corpo convergisse para sua barriga, fazendo tudo ferver ali. Sua respiração se tornava ofegante e os olhos arregalado e tanta coisa revirava dentro de si que sua barriga doía.

— Do que você está falando, Robert? — tentou colocar confiança em sua voz, mas ela saiu mais tremida do que gostaria.

— Não se faça de idiota, Lambert. — disse Robert de forma ameaçadora, apertando mais o braço dela — Eu vi vocês duas depois da festa. Eu vi vocês se agarrando no meio da chuva. Obviamente fiz o que se faz com dois cachorros se atracando.

Os olhos de Joanna arregalaram de compreensão e por um instante ela ficou pálida, sem um pingo de sangue em seu rosto. Lembrou-se do carro passando em velocidade e jogando água nela e em Cherry. E de repente tudo fez sentido.

— Foi você…

— Eu vou te dar um único aviso, Lambert. — Robert agora estava tão perto de Joanna que ele podia sentir o hálito dele em seu rosto, forçando-a a virar o rosto para o lado — A Cherry é minha. Se você ficar no meu caminho, eu vou te pisar.

— Ah, corta essa, Robert. — tentando ter um pouco mais de confiança, deu um novo puxão, tentando soltar o braço da mão dele — A Cherry está tão perto de ser sua quanto eu estou de parar de pintar o cabelo — Outro puxão, sentia a mão dele cada vez mais forte em seu braço, mas não se intimidou. Devolveu o olhar dele, com tanta raiva quanto — Eu não tenho medo de você. Robert.

Os olhos de Robert se tornaram ainda mais ameaçadoras enquanto ele se aproximava tanto a ponto de estar testa com testa com Joanna. A garota devolvia o olhar, fazendo os dois parecerem lutadores de MMA durante a pesagem. Depois de longos segundos se encarando como se quisessem explodir uma veia no cérebro um do outro apenas com o olhar, Robert soltou o braço de Joanna com selvageria, afastando-se bruscamente.

— Eu te avisei uma vez, Lambert. Eu vou te ferrar. Muito.

E de forma intempestiva foi saindo de perto de Joanna, sumindo na direção de um dos corredores de saída. Joanna sustentou a pose até o garoto não estar mais presente, foi quando sentiu as pernas tremerem violentamente e o corpo desabar lentamente, escorregando pela parede. Não tinha medo de Robert. Enfrentaria ele quantas vezes fosse preciso. Mas ele sabia sobre Cherry. E não queria que ele prejudicasse ela.


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O vento de outono não impedia Cherry de estar completamente suada. Para falar a verdade, a única coisa que o vento fazia era atrapalhar. Olhou brevemente na direção do placar enquanto afastava um pouco o cabelo do rosto.

Estavam na metade do terceiro período e Doveport ganhava pela pequena vantagem de 16 à 14. Não estava realmente esperando que a escola rival tivesse encontrado uma atacante tão boa de um ano para o outro, mas Natasha Parker além de alta era muito forte e vencia facilmente no corpo a corpo qualquer uma das suas jogadoras. Quase como se enxergasse o campo em câmera lenta, tentou absorver a formação e a tática da escola adversária, mas não teve muito tempo para pensar. A bola era atirada em sua direção e ela rapidamente capturou com sua rede. Estava perto do gol, meio em diagonal e não demorou até que duas jogadores de Doveport estivessem à sua frente, pronta para lhe barrar. Cherry gingou para um lago e para o outro, tentando encontrar uma brecha que surgiu quando umas das marcadoras errou o movimento, deixando espaço suficiente para ela atirar a bola perto da orelha da goleira. A torcida de Riverside gritou, mas uma voz se sobressaiu entre todas.

— É ISSO AÍ PARIS!! UHUUUUUUUUUUUUUUUL!! RIVERSIDE RAINHA, DOVEPORT NADINHA!

Cherry não evitou um sorriso largo ao reconhecer a voz. Nem precisou procurar muito para ver o cabelo verde quase fluorescente de Joanna no meio da torcida. Mal tinha focado os olhos nela quando sentiu algo colidir fortemente consigo, jogando-a no chão. Sentiu-se zonza e com um apito em seu ouvido e rapidamente notou vários pares de pés surgindo ao seu redor, com uma gritaria tão confusa que nem se ela estivesse 100% ela não teria entendido. Só compreendeu a voz de Joanna berrando da arquibancada.

— SUA SALAFRÁRIA DE UMA FIGA! VAI VER SÓ O QUE EU VOU FAZER COM VOCÊ! VOCÊ É GRANDE MAS NÃO È DUAS!!

Apesar de lá dentro sentir uma pequena vontade de sorrir, ainda sentia o mundo girar um pouco à medida que ia se levantando. O árbitro da partida lutava para manter as duas equipes afastadas. Aos poucos foi começando a sintonizar novamente sua cabeça enquanto ouvia Natasha se justificando.

— Foi sem querer, eu não a vi no caminho!

— Sem querer uma ova! Você atingiu ela logo depois do gol, sua troglodita! — gritava Amélia, uma das zagueiras da equipe de Riverside, enfurecida.

— Já chega! — berrou o árbitro, puxando um cartão amarelo do bolso e mostrando para Amanda, apontando para o lado de fora. A garota tentou argumentar, mas acabou saindo furiosa do gramado, arrancando tufos de grama com chutes.

— É agora. Precisamos aproveitar a vantagem. — disse Cherry para sua equipe, enquanto retornavam para o campo de defesa — Ela vai ficar de fora até o fim desse período, temos que abrir a maior vantagem possível.

— Cherry, você tá bem? — perguntou Amélia, olhando preocupada para a capitã.

— Como nova. — ainda se sentia um pouco zonza pelo encontrão e uma grande dor em seu ombro, mas nada que fosse lhe tirar do jogo. Seus olhos foram até a arquibancada e notou o olhar preocupado de Joanna. Precisava ganhar. Mais do que nunca agora.

Aproveitando da vantagem que tinham obtido com a suspensão temporária de Natasha, Riverside foi com tudo para cima e conseguiu virar a partida. Ao final do terceiro período, tinham aberto uma boa vantagem de 21 x 16. Natasha retornou para o quarto e último período descansada e com vontade de massacrar. Irritada pela suspensão, ela passou a entrar mais duro nas jogadas, fazendo surgir várias reclamações pedindo sua expulsão, mas o juiz parecia não estar tão disposto assim a expulsar a garota. E o efeito Natasha em campo deu um gás para Doveport. Faltavam pouco menos de um minuto para o final da partida quando a garota marcou mais um gol, empatando a partida. 23 x 23. Parando para recuperar o fôlego, Cherry olhou brevemente para sua equipe. Estavam todas cansadas e doloridas. Todas tinham encarado o tanque de guerra que era Natasha várias vezes e pareciam que iam desmontar a qualquer momento. Ela precisava fazer alguma coisa.

— Lexie. Lança a bola o mais longe possível.

— Capitã…você tem certeza? — perguntou Lexie, a goleira da equipe.

— Confia em mim. Eu sei o que tô fazendo.

Balançando a cabeça afirmativamente, Lexie girou seu bastão no ar e atirou a bola o mais rápido possível. Mesmo sentindo as dores da partida e o cansaço físico natural, Cherry usou as forças que lhe restaram para dar um enorme pique pelo gramado, passando pela defensiva de Doveport, conseguindo capturar a bola ainda no ar. Pegando a defesa deles de surpresa, não foi difícil passar na direção do gol. Quando ergueu o braço para fazer o lançamento, notou pela visão periférica algo grande e maciço indo em sua direção. Deu um passo para frente, o suficiente para que o tranco de Natasha não lhe pegasse em cheio, mas prejudicando seu lançamento. Viu a bola ir lentamente na direção do gol, quase que em câmera lenta. Não fosse o ângulo desfavorável, certeza que a goleira teria pego a bola, mas antes mesmo de ser jogada novamente no chão, viu a bola estufar a rede e o grito de comemoração de todos ao seu redor.

— FINAL DE JOGO! RIVERSIDE 24 x 23 DOVEPORT!

Ouvia os protestos das garotas de Doveport, mas o que mais lhe importava no momento era a comemoração e todos os pares de mãos que lhe ajudavam a levantar no momento e lhe davam tapinhas calorosos nas costas. Estava destruída fisicamente mas tinha algo de gratificante em ver as alunas de Doveport saírem infelizes dali. Tinha vencido mais um jogo! Mantinha sua invencibilidade e tinha começado o campeonato com o pé direito! Nada poderia estragar aquele momento.

— Cherry?

Em meio à balbúrdia das jogadoras e da torcida, Cherry conseguiu ouvir alguém chamando seu nome. Seus olhos rapidamente se desviaram da comemoração do time para ver quem tinha lhe chamado e rapidamente se arregalaram.

Era Bellamy. Mas não apenas Bellamy. O garoto tinha em mãos um enorme buquê de rosas vermelhas e estava vestido de forma impecável. O queixo de Cherry caiu um pouco ao ver o garoto daquela forma e por um instante pareceu perder a capacidade de falar, que só foi retomada ao ouvir o “UUUUUUUH” prolongado e provocador que o resto do time dava ao ver a cena.

— Bellamy…o que é isso? — perguntou meio como quem não quer nada, tentando dar um ar divertido à situação.

— Eu comprei essas rosas apenas para parabenizar a capitã vencedora. Mas a verdade é que eu não consigo pensar em um momento mais perfeito para falar isso. Nós claramente somos feitos um para o outro, Cherry. Somos uma combinação perfeita! Eu não consigo imaginar mais ninguém ao meu lado que não seja você. Por isso eu quero saber se você aceita namorar comigo.

Tudo ao seu redor parou. Era como se, de repente, o mundo tivesse sido desligado e só Cherry continuasse ativa. Não ouvia nada e todos pareciam ter sido paralisados. Repentinamente tinha consciência de cada parte de seu corpo, porque tudo parecia pulsar, como se houvessem vários micro corações em cada terminação nervosa de seu corpo. Seus olhos rapidamente procuraram no meio da multidão os cabelos verde neon de Joanna, mas não conseguia encontrá-la. Porém, seus olhos acabaram parando sobre um homem e uma mulher de aspecto formidável e bastante formais para a situação. Seu pai sorria em sua direção como se soubesse o que estava acontecendo ali, como se tivesse feito parte daquele plano. E de repente ela sabia. Ela sabia que nunca poderia ficar com Joanna. Ela era tudo o que sua família jamais iria querer. E aquele pensamento agiu como uma enorme mão invisível em torno de seu coração. Apertava tão forte que Cherry chegou a sentir uma dor física real no local que lhe arrancou algumas lágrimas de seus olhos.

Ela chegou à conclusão que mais temia. A conclusão que ela adiou tempo de mais para chegar, por mais que em seu íntimo ela sempre soubesse. Era óbvio e ela se sentiu idiota por ter adiado tanto aquele momento. Ela jamais poderia ter para si a garota que amava. Ela jamais poderia ter para si a felicidade que tinha sentido naquelas últimas semanas. E por mais que Bellamy fosse perfeito para si, como duas peças de quebra-cabeça que se encaixam, não era ele quem Cherry queria. Era Joanna. Mas para um Depardieu, querer jamais é poder.

— Eu aceito.


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O jogo chegava ao final com um estrondo da arquibancada. Joanna nunca tinha sido do tipo esportiva, mas não deixou de vibrar de forma efusiva com a vitória de Cherry. Para sua sorte, suas amigas até que tinham se deixado levar pelo espirito esportivo e estavam tão animadas quanto ela xingando as jogadoras de Doveport, à ponto de não notarem quando ela saltou para dentro do campo, na direção das jogadoras de Riverside. Precisava falar com Cherry, ao menos para dar os parabéns para ela!

— Ei Paris! Belo jog…

Não chegou a concluir a frase, já que assim que se aproximou do bolo de jogadoras, notou Bellamy diante de Cherry, com um buquê de rosas. De repente parecia que tinha abandonado o corpo e estava observando a cena como um observador em terceira pessoa, como se aquilo não fosse sobre ela. Como se estivesse assistindo um de seus seriados na TV e não vendo aquilo na vida real. Bellamy pedia Cherry em namoro e, depois de um silêncio que pareceu durar eternidades, ela aceitou.

Então foi quando o mundo pareceu desabar. Ela tinha aceitado. Não. Não podia ser. Aquilo com certeza era um pesadelo e logo Joanna iria acordar em sua cama, sobressaltada com o alarme de Jules. Em alguns segundos. Não mais do que alguns segundos.

Mas esses segundos nunca passaram. A imagem continuava a acontecer diante de seus olhos. E só quando a primeira lágrima caiu por seu rosto foi que notou que estava chorando. Observou Bellamy abraçar Cherry e foi só então que seus olhos se encontraram. Queria poder decifrar a expressão de Cherry ao lhe ver ali. Ela parecia desolada e devastada, como se tivesse tomado a pior decisão do mundo, mas Joanna não conseguia entender aquilo.

— Ei Lambert. O que tá fazendo aqui?

A pergunta de uma das jogadoras do time de lacrosse chamou Joanna de volta ao mundo. Piscando os olhos demoradamente, a garota ficou olhando para as outras jogadoras que se dividiam entre fazer uma cançãozinha infantil para provocar Cherry e Bellamy e olhar curiosas para Joanna. Sentiu a boca abrir sem que nenhuma palavra saísse e repetiu esse ato algumas vezes, até notar que não conseguia falar nada. Deu alguns passos para trás antes de virar-se e sair correndo dali. Não sabia para onde ia. Só queria correr para o mais longe possível, até que suas pernas não aguentassem mais. Só queria ir para longe.

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