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Capítulo 19

Os acontecimentos depois de Bellamy lhe pedir em namoro tinham se tornado um borrão na mente de Cherry, como se ela tivesse visto tudo dentro de um furacão. Quando deu por si, estava sentada na mesa de uma das lanchonetes mais bem frequentadas perto da escola. Nem sabia bem quanto tempo tinha passado, só teve mesmo noção de que estava com seus amigos. Perdida, como se tivesse acabado de despertar, olhou ao redor vendo enquanto Mitsuha, Cora e Tristan conversavam alegremente. Ao seu lado estava Bellamy e, ao olhar para baixo, notou que estava de mãos dadas com ele. Era como se tudo estivesse acontecendo no piloto automático e ela estivesse dando alguns cochilos. A última imagem consciente que tinha gravada em sua cabeça era a de Joanna correndo para longe.

— Ai, mas foi tão absurdamente fofo o pedido! — derreteu-se Mitsuha, debruçando-se sobre a mesa, com olhinhos sonhadores — Eu daria tudo no mundo para ter algo assim para mim.

— Você vai encontrar, Mit, eu tenho certeza! — disse Cora enquanto levava uma colherzinha de sorvete até a boca. As duas pareciam radiantes. Tristan tinha um ar mais contido e olhava preocupado para Cherry, mas disfarçava bem.

— Ei Cherry. — a voz de Bellamy soou meio longe. Era quase como se ele estivesse falando com outra pessoa e não com ela — Você tá bem? Não tocou no seu sorvete. Ele já derreteu todo.

Meio perdida, a garota olhou para baixo e viu que de fato o sorvete já tinha se tornado uma mistura meio estranha de vários sabores diferentes, com granulado boiando e uma cereja no meio. Ainda haviam ilhotas espalhadas aqui e ali de montinhos de sorvete ainda resistentes, mas a grande maioria já tinha derretido.

— Acho que foi a pancada que a Natasha me deu. Mas eu vou ficar bem. — disse Cherry sacudindo um pouco a cabeça, como se quisesse sacudir para longe um enxame de abelhas incrivelmente chato.

A desculpa pareceu convencer Bellamy, que apenas sorriu para ela e inclinou-se para lhe dar um selinho. Cherry correspondeu meio sem vontade, dando um sorriso meio sem jeito antes de murmurar que precisava ir no banheiro, apenas para poder sair um pouco de perto deles. O local estava bem cheio de outros alunos de Riverside, a maior parte comemorando a vitória. Aqui e ali via o rosto sorridente de outras jogadoras da equipe lhe cumprimentando, mas não parava para falar com ninguém. Apenas entrou no banheiro e caminhou na direção de uma pia.

Estava péssima. Se sentia péssima. Era como se algo dentro dela tivesse quebrado de uma forma que era impossível ser colada. Estava pálida e sentia como se pudesse vomitar à qualquer momento e Cherry tinha a certeza absoluta de que não se tratava de algo relacionado com a pancada.

Só a mera lembrança de Joanna fazia seus olhos se encherem de lágrimas. Queria chorar, queria gritar, mas principalmente queria correr até ela e falar que nada daquilo era verdade. Que a única coisa verdadeira em sua vida era Joanna Lambert e os momentos em que ficaram juntas. Aquilo era verdade e mais nada. Mas sabia que não podia. Ela e Joanna estavam fadadas em nunca poderem ficar juntas e Cherry sabia disso.

Respirando fundo e tentando engolir aquele bolo incômodo que se formava em sua garganta, Cherry abriu a pia e juntou um pouco de água nas mãos apenas para molhar o rosto. Estava em busca de um pouco de papel toalha para secar o rosto quando ouviu a porta do banheiro se abrindo, junto com o inconfundível som de risadas. Não queria ter que falar com ninguém no momento, então andou de pressa até uma das cabines, fechando-a rapidamente, esperando que, seja lá quem fosse, saísse rápido.

Mal tinha fechado a porta e o som de risadas ecoou pelo local junto com o inconfundível som de beijos. Seja lá quem fosse, tinha ido ali dar uns amassos o que fez Cherry revirar os olhos. Ia ter que esperar ali mais do que imaginava. Ouviu uma pancada ali perto e tinha certeza de que alguém tinha se encostado na porta de uma das cabines. Mais sons de beijos e uma voz que era levemente familiar.

— Ei! Controle essas mãos, mocinha!

Porém o choque maior veio ao ouvir a outra voz. Aquela era ainda mais familiar e pelo tom de voz pastoso dava para notar que estava claramente embriagada.

— O que? Não tem ninguém aqui, só nós duas…— disse Joanna, com um leve ar de malicia. Mais sons de beijos e dessa vez o coração de Cherry pareceu se despedaçar em mil pedaços.

Não ia aguentar ficar ali ouvindo aquilo. Já tinha lágrimas nos seus olhos e sentia que poderia começar a soluçar a qualquer momento. Torcendo para que as duas estivessem ocupadas demais ali, Cherry abriu a porta da cabine com cuidado, esperando não ser vista, mas mal tinha fechado a porta quando alguém soltou um “ui” e o inconfundível som de um beijo interrompido ecoou pelo banheiro.

Não queria olhar para o lado, apenas queria fingir que não estava vendo ninguém ali, mas seus olhos lhe traíram e ela acabou olhando para o lado. Não tardou em reconhecer Amanda, a garota de cabelo vermelho de Doveport, com o rosto bem vermelho e lábios de quem acabou de dar um beijo bem intenso. Ela estava encostada duas cabines distante de onde Cherry estava escondida. Joanna estava à sua frente e pelo jeito tinha se afastado um pouco ao notar mais alguém ali. As duas estavam bem desarrumadas, tanto suas roupas quanto seus cabelos.

— Ei Cherry. — disse Amanda com um ar tímido, fazendo ela parecer uma criança que foi pega no flagra tentando roubar o pote de biscoitos — Desculpa. A gente não sabia que tinha gente aqui.

Queria dizer que não tinha problema, mas a risada irônica de Joanna lhe cortou um pouco a linha de pensamento. Ela não lhe olhava nos olhos. Na verdade mal olhava em sua direção. Seus olhos estavam vidrados na maçaneta da cabine ao lado de onde ela estava e só depois de um tempo Cherry notou que ela fedia à alcool.

— Nah, ela não liga, não é? Certeza de que deve estar pensando no namorado agora.

A mágoa e a ironia na voz de Joanna atingiram Cherry direto no peito, quase como uma bala. Sentiu o ar faltar de forma que até ofegou. Sentiu as lágrimas caírem pelo lado do rosto e, sem conseguir dizer nada, apenas saiu do banheiro  em passos rápidos, meio vacilantes, esbarrando em algumas pessoas no meio do caminho, na tentativa de chegar até a mesa onde estava. Só no meio do caminho percebeu que não queria ir para lá. Queria ir para casa, mas antes que mudasse de direção, sentiu alguém segurar seu braço.

— Ei Cherry. — disse Bellamy, claramente preocupado — Você tem certeza de que está bem?

— Não. — respondeu Cherry, olhando rapidamente na direção do banheiro, mas voltando a olhar para Bellamy — Eu acho que quero ir para casa. Não estou me sentindo muito bem.

— Ok. Vem, eu te levo. Depois aviso aos outros que precisamos sair.

Concordando com um aceno de cabeça, Cherry deixou que Bellamy lhe conduzisse até o lado de fora. Não negou quando ele ofereceu pagar um taxi. Queria chegar em casa o mais rapidamente possível, se trancar no seu quarto e chorar até aquela dor acabar, mesmo achando que ela nunca acabaria.


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Um pedaço de si desejava ferozmente que, quando acordasse, tudo não tivesse passado de um sonho. Um pesadelo muito ruim. Mas quando o som de vozes e risadas soou no andar de baixo da casa, lhe despertando naquele domingo, as imagens do dia anterior invadiram sua mente.

Sentia o corpo mole e doentio, como se tivesse sido acometida por uma gripe muito forte. Sua cabeça girava um pouco e doía, como se alguém estivesse martelando sua têmpora com força. Sentia a boca seca e uma enorme vontade de beber todo o estoque de água da casa, mas ainda assim, quando abriu os olhos, virou de barriga para cima e ficou olhando o teto longamente.

Seu estômago embrulhava só de lembrar do momento em que Bellamy pedia Cherry em namoro e ela aceitava. E Joanna tinha certeza de que nada tinha a ver com o tanto que ela tinha bebido no dia anterior. Sentindo o peso daqueles últimos acontecimentos lhe empurrando mais para o meio da cama. Talvez devesse continuar ali. Apenas deitar em posição fetal e dormir até que de fato aquilo tudo se tornasse apenas um pesadelo. Mas sabia que não adiantava tentar fugir da realidade.

Vestiu um roupão que parecia ter sido feito para a Joanna de 5 anos atrás por cima do pijama velho e surrado que usava e saiu do quarto. As vozes altas que vinham lá de baixo fizeram ela apertar mais os olhos e pressionar as têmporas para dentro da cabeça, demorando um tantinho para conseguir descer as escadas.

 — Wow! — a voz de Mildred fez Joanna parar um passo na metade, comprimindo os olhos novamente — Vejam só se a Bela Adormecida não acordou!

— Eu agradeceria muito se você falasse um pouco mais baixo, Mil… — murmurou Joanna com os olhos beeeeeeem pequenininhos enquanto atravessava a sala até uma cadeira, largando-se ali.

— Você tá bem, Jo? — perguntou Fani, a voz mais suave e baixa, chegando perto da amiga com um copo de água e duas aspirinas.

— Eu sinto como se duas retroescavadeiras tivessem dançado lambada em cima de mim durante três horas. — murmurou Joanna, pegando as aspirinas e jogando para dentro, engolindo tudo com a água que Fani lhe dava — Valeu, F.

— Cara, eu nunca te vi beber tanto como ontem! — disse Mildred, ligeiramente impressionada — Quer dizer, a gente já encheu a cara pra valer várias vezes, mas ontem…nossa ontem parecia que você QUERIA ficar mal.

Não deixava de ser verdade. E quando flagrou o olhar de Videl em si, sabia que a amiga entendia bem o motivo de tudo aquilo. Se remexendo meio incomodada na cadeira, Joanna fingiu estar procurando uma posição melhor, mas acabou não precisando responder porque a campainha tocou.

— Já vaiiiii! — gritou Mildred e, apesar de se sentir um pouco melhor, Joanna fechou os olhos com aquele gritinho agudo enquanto Mildred corria em direção à porta — Olá, bem-vindo à residência Lambert, você tem convit…

Mas a frase de Mildred morreu na metade e quando Joanna teve disposição para mudar de posição e olhar para a porta, entendeu bem o porquê. Sentiu o estômago revirar dolorosamente enquanto observava Cherry recortada contra a luminosidade dolorosa da luz de outono que entrava pela porta aberta.

— Ei…Cherry…—disse Mildred meio incerta, olhando para as outras rascals como se perguntasse o que ela tinha ido fazer ali — que…bom te ver?

— Eu preciso falar com a Joanna. — disse Cherry, sem rodeios. Notou que todas, menos Videl, olhavam para ela com um ar curioso e notou que aquilo poderia soar estranho — Precisamos falar sobre o trabalho.

— Ah. Claro. Trabalho. Isso. Vocês são duplas. Ôoo Jo!

— Eu já ouvi, Mil. — disse Joanna, levantando-se com esforço da cadeira onde estava largada — Eu vou me trocar, espera só um minutinho.

Ouviu um murmúrio de concordância vindo de Cherry e tratou de subir o mais rápido possível. Não demorou em descer vestindo um short folgado e uma camiseta sem manga meio frouxa com uma estampa descascada de banda de rock e um casaco jeans por cima. Não se deu ao trabalho de arrumar os cabelos ou dar um jeito naquela cara de quem estava de porre. Apenas desceu rapidamente a escada, murmurando um “já volto” para as amigas e saindo da casa, fechando a porta e caminhando alguns passos na direção da rua antes de voltar a olhar para Cherry.

— Pode falar.

A ruiva permaneceu em silêncio, evitando o olhar de Joanna. Depois de vários segundos daquele silêncio incômodo, Cherry decidiu falar.

— A gente podia conversar em outro lugar?

Sem vontade de discutir, Joanna apenas concordou. Voltou para dentro de casa única e exclusivamente para pegar a chave da caminhonete, seguindo até ela. Esperou apenas Cherry entrar para partirem em silêncio, apenas com o barulhento som do motor quebrando o clima. Não falaram em momento algum e tampouco Cherry perguntou para onde estavam indo. Parou a caminhonete no mirante perto do lago Emerald, quando finalmente Joanna desligou o carro.

— Pronto, agora você pode falar.

— Eu queria me explicar.

— Você não precisa. — cortou Joanna, os olhos meio duros à frente.

— Mas eu quero! — disse Cherry, quase implorando.

— Você fez sua escolha, ponto final, acabou. O que você tem mais para falar? — perguntou Joanna, finalmente olhando para Cherry. Ela parecia abatida e seus olhos estavam vermelhos e inchados, como se ela tivesse chorado muito — Que não era bem o que você queria? Que você na verdade gosta de mim?

Joanna sustentou os olhos em Cherry e por um instante teve a impressão de que ela ia dizer que era exatamente isso. Mas o ímpeto da Depardieu pareceu murchar junto com seus ombros e ela abaixou os olhos para os próprios pés.

— Nós nunca poderíamos ficar juntas.

— Bem, isso ficou bem óbvio quando você aceitou namorar o Bellamy. — disse Joanna, a voz carregada de ironia, revirando os olhos de leve.

— Joanna, por favor…

— Você só podia ter sido honesta comigo! — a voz de Joanna subiu uma oitava e ela se arrependeu disso pois sua cabeça doeu como um sino vibrando — Com aquela história de querer conversar comigo depois do jogo e bla bla bla…podia ter dito que já tinha se decidido. Ou ficou com pena só porque eu andei a pé até sua casa?

— Não é nada disso! — disse Cherry, com a voz chorosa — Eu realmente queria conversar com você, eu só…

— Só o que, Cherry? — e Joanna tornou a voltar os olhos para a ruiva, com uma determinação feroz — Me diz, só o que? Você veio aqui querendo se explicar, então vai, se explica!

Novamente o silêncio pairou sobre elas. Joanna sustentou o olhar em Cherry, mas a garota não teve coragem de olhar para ela. Depois de longos segundos no mais completo silêncio, Cherry fungou alto e começou a limpar as lágrimas com as costas das mãos.

— Deixa pra lá. — disse Joanna, tornando a ligar o carro. O som alto do motor da caminhonete pareceu despertar Cherry. As mãos dela se projetaram como se fosse tentar impedir Joanna, mas ela recuou logo depois, se encolhendo como um bichinho acuado. Mesmo sentindo uma certa pena, Joanna apenas manobrou o carro para longe dali, pegando o caminho de volta para a cidade.


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O caminho foi feito no mais completo silêncio. Em sua mente, Cherry lembrou do dia em que Joanna lhe encontrou sozinha no ponto de ônibus, quando Robert lhe “sequestrou” ou no dia em que elas mataram aula. A lembrança das risadas, a conversa boba e até mesmo a “briga” para fazer o rádio do carro funcionar mais do que lhe trazerem alegria, tornaram o momento ainda mais triste.

Demorou um instante para notar que estavam paradas na frente da sua casa. Cherry piscou os olhos demoradamente, parecendo custar à retornar para a realidade. Olhou para Joanna como se esperasse que ela dissesse alguma coisa, mas a garota olhava fixamente para frente, fingindo olhar o esmalte preto descascado em suas unhas. Sentindo como se, a partir do momento que saísse pela porta do carro, estaria encerrando definitivamente aquilo. E talvez por isso tivesse demorado tanto para conseguir sair. Seu coração doía só de pensar que aquilo era o fim.

Quando conseguiu descer, suas pernas pareciam trêmulas. Sentia que estava prestes à chorar enquanto dava a volta na velha caminhonete. Parou na calçada, ao lado da janela de Joanna, que continuava olhando para frente de forma obstinada.

— Joanna, por favor…

— A gente se vê na escola, Cherry. — disse Joanna, antes de acelerar o carro, partindo antes que Cherry pudesse falar mais alguma coisa.

A dor que sentiu em ver a traseira da caminhonete desaparecer depois de uma curva foi tanta que ela começou a chorar copiosamente. Estava tão triste ali, parada no meio da calçada, abraçando o próprio corpo que tremia a cada soluço que não viu enquanto um conversível dava partida, afastando-se da rua onde Cherry morava.


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